Antônio Pereira da Silva*
Naqueles idos de 1954, o bairro Bom Jesus era conhecido como Tabocas (taquara, espécie de bambu), em razão do brejo que tinha o mesmo nome e se estendia pelas margens do córrego de Antônio Domingues. Era uma pequena vila, com pouca urbanização. Havia ruas calçadas e descalças (a maioria). Sem esgoto e sem qualquer meio de escoamento das águas pluviais que, na época das chuvas desciam vertiginosas pelo declive das ruas rumo ao brejo de chão de turfa com muitos buritis mal sustentados pela terra mole. Margeando o brejo, principalmente nas cabeceiras do córrego, havia diversos casebres.
O dia 11 de fevereiro amanheceu nublado e o dia avançou em meio a um clima embruscado. Ao anoitecer, começou a chover torrencialmente.
Lá pelas três da madrugada, enorme estrondo acordou muitas pessoas que moravam nas proximidades do brejo. Dona Nalzira e seu marido, o pintor Aderlírio Rodrigues, saltaram da cama espantados com a lamaceira que invadia sua casa. A chuva continuava violenta. No meio da escuridão escutavam apenas o bater das águas que caíam e das que corriam pouco abaixo. As crianças dormiam inocentes. O casal permaneceu de pé, observando, atento. Daí a pouco, bateram em sua porta. Eram as filhas de João Juvêncio, que estava viajando a serviço de Waldomiro de Souza, seu patrão. Com elas dormia uma velhinha cega que as meninas não sabiam onde estava. Elas estavam sujas de barro e molhadas. Choravam desesperadas contando que sua casa rodara na enchente. Mal socorreram as meninas, ouviram gritos desesperados na rua. Abriram a porta para ver o que era. Uma mulher nua rodava entre água, lama e destroços, tentando agarrar-se em alguma coisa. Afundava e emergia até que, extenuada, machucada, entontecida conseguiu safar-se. Envergonhada, recusou os socorros de Nalzira e Aderlírio. Sua casa tinha desabado e rodara. Ela não sabia onde estava o seu marido, Patrocínio, e suas filhas.
Os céus, inclementes, continuavam despejando água. A corredeira pouco abaixo da casa de Aderlírio subia a olhos vistos. Resolveram sair dali e, com os filhos, mais os socorridos, aos quais tinham dado roupa limpa e seca, foram bater à casa de Geraldo Mariano que também tinha acordado com o estrondo.
Tanto o barulho da tromba d’água quanto da enchente que corria arrastando tudo não acordaram Ambrolino Lázaro da Silva que só despertou às quatro horas quando sua casa começou a ser arrastada. Assim mesmo porque lhe caíram sobre a cabeça telhas, madeiras e objetos que saltavam dos móveis deslocados. Assustado, pulou da cama gritando pelos filhos e saiu para fora da casa que viu desmanchar-se e ir sumindo tragada pelas águas. Como ninguém tivesse saído com ele, ficou desesperado quando ouviu gritos dos filhos pedindo socorro. Na escuridão, sem nada ver, atirou-se na correnteza tentando salvá-los. Nadou com dificuldade para um lado e para outro chamando pela mulher e pelos meninos, apalpando fundos e beiradas até que resvalou num pequeno braço. Agarrou-o e arrastou a criança para fora. Era a pequena Ana, de quatro anos. Única que conseguiu salvar. Deixou-a em lugar seguro e voltou para as águas, mas não encontrou mais ninguém. Perdeu a esposa e quatro filhos.
Foi uma das maiores tragédias que se abateram sobre a cidade. As vítimas foram: Ambrolino Lázaro da Silva, João Juvêncio, Luiz Francisco, Severino Barbosa, Sebastião da Silva, José Fidelis, Adão Rufino, Patrocínio e Afonso (que era engraxate no Trianon). Alguns desses perderam casa e família, outros só a casa e outros apenas objetos, móveis e animais.
As sete da manhã, um destacamento militar comandado pelo sargento Mamede e pelo cabo Urbano, mais um grupo de funcionários da Prefeitura começaram a ajudar no resgate de valores e bens dos desabrigados. Foram resgatados três corpos.
Como continuassem os desabamentos, a área foi isolada. Pouco depois desses grupos de resgate, chegou o prefeito Tubal Vilela que tomou providências para abrigar as vítimas encaminhando-as para os barracões da Exposição Agro Pecuária que ficava na avenida Vasconcelos Costa. Outras pessoas compareceram para confortar e ajudar as vítimas: Bolivar Carneiro, Omilton Avelar Borges, Afrânio Rodrigues da Cunha, dona Rita Narcisa, Bolívar Ribeiro e outros.
Entre tantos desesperos, descobriu-se que Patrocínio e suas filhas, cuja esposa tinha rodado desnuda na corredeira, estavam protegidos em casa de Alceu Ribeiro e a velhinha cega que morava com as filhas de João Juvêncio, conseguiu safar-se da tragédia, não obstante sua deficiência.
*Jornalista e escritor – Uberlândia – MG