Dr. Flávio de Andrade Goulart*
Não conto os mortos de faca nem os mortos de polícia; conto os que morrem de febre e os que morrem de tísica. Conto os que morrem de bouba, de tifo, de verminose: conto os que morrem de crupe, de cancro e schistosomose. Mas todos esses defuntos, morrem de fato é de fome, quer a chamemos de febre ou de qualquer outro nome. Morrem de fome e miséria quatro homens por minuto, embora enriqueçam outros que deles não sabem muito.
Ferreira Gullar teria que reescrever seu famoso poema para dar conta da situação atual, na qual a Covid mata mais do que a soma de todas as doenças que nele são arroladas. Mata por toxemia, por encharcamento de pulmões, por provocar a falência de órgãos diversos, por falha ou exagero do sistema imunitário, por comprometimento de funções vitais e mais ainda por retirar das pessoas condições de sobrevivência, por deixar famílias órfãs, por extinguir empregos, por dificultar a educação em exercer seu papel salvador de vidas, por desencadear quadros depressivos, de adição a drogas, de violência doméstica e até de autoextermínio. Sem esquecer que tem favorecido o aparecimento e a proliferação de profetas fajutos, líderes falsificados e psicopatas enrustidos. Não bastasse isso tudo, no Brasil o impacto de tal doença já comprometeu até a longevidade da população, com a expectativa de vida do brasileiro reduzida, em média, em praticamente dois anos, regredindo a patamares do início da década passada (link ao final) – para alegria de Paulo Guedes & Associados. Por tudo isso, trago aqui hoje discussão relacionada ao mundo do trabalho e dos empregos, onde residem fortes aliados do agente biológico da devastação que ora estamos assistindo.
Segundo dados do IBGE o Brasil encerrou 2020 com a pior média de desemprego de toda sua história, com outros indicadores igualmente simbólicos igualmente em piora, como é o caso da sensação de desalento, da desocupação formal e da subutilização da mão de obra. Os dados atuais são ainda mais graves do que aqueles da recessão econômica de 2014 a 2016, pois pelas estimativas atuais o desemprego médio já atingiu 14,4 milhões de pessoas e taxa de desocupação ficou em 13,5%, percentuais maiores em toda a série histórica da Pnad Contínua, ou seja, desde 2012. Não por acaso este é também o ano do início da pandemia de Covid 19.
Enquanto isso, um novo paradigma nas relações de trabalho se impõe: aquele do teletrabalho, ou homework (escolham entre o neologismo e o anglicismo). O entendimento sobre tal questão indica que será cada vez menos provável que o processo e as relações de trabalho voltem a ser como eram antes, pelo menos nas economias desenvolvidas. Já se sabe que, se por um lado o trabalho face a face é catalisador de interações sociais que estimulam a criatividade e surgimento de novas ideias, por outro, o trabalho em casa sob condições propícias —por exemplo, boa conectividade na internet – pode ser ainda mais produtivo, além de economizar tempo de deslocamento entre a casa e o trabalho. Isso vale para as nas economias mais desenvolvidas – mas, cabe indagar: e aqui entre nós?
Aqui no Brasil o trabalho remoto esbarra em sérias dificuldades, desde o fechamento prolongado das escolas, que impede que trabalhadores com filhos possam aproveitar as vantagens do mesmo, até obstáculos relacionados à própria tecnologia e disponibilidade de equipamentos e bytes de acesso. No nosso país, dados da recente Pnad mostram que o teletrabalho não se estendeu de forma tão ampla quanto lá fora, pois não mais do que 9,0% das pessoas ocupadas e não afastadas trabalhavam de forma remota no final de 2020, cifra em decréscimo ao longo do ano. Como aqui a desigualdade impera, os eventuais benefícios do trabalho remoto se concentraram em trabalhadores já de certa forma privilegiados, por exemplo, portadores de carteira assinada e nível superior de escolaridade, além de raça/cor branca. Gente assim é que aufere os ganhos de produtividade e mantem equilíbrio entre suas vidas pessoais e profissionais, para quem este tipo de trabalho representa vantagem de fato, como se fosse um real aumento de salário.
Em contrapartida, muitos dos trabalhadores que não se beneficiaram disso são exatamente aqueles que perderam e não conseguem recuperar seus empregos durante a pandemia. E sem dúvida ainda existe grande incerteza se muitos dos postos de trabalho perdidos, particularmente no setor de serviços, irão retornar após a crise. Isso implica que políticas de emprego, de treinamento e qualificação da mão de obra devem ser seriamente consideradas, se não se quiser apostar no crescimento da desigualdade e deixar muita gente para trás, embora isso não pareça ser uma real preocupação do atual governo.
As implicações disso sobre a saúde das pessoas são nítidas. Quem é pobre, negro, desempregado ou mora nas periferias, não só adoece como morre mais de Covid, além de não conseguir usufruir dos recursos que o mundo do trabalho anda oferecendo para alguns trabalhadores. Isso implica em que o sistema de saúde deverá se adaptar a mais este desafio.
Assim, antes de tudo, os serviços de saúde devem se preparar para receber uma nova carga de doenças, para as quais as estimativas, em relação aos anos anteriores, são de acréscimo acentuado e mesmo de aceleração de incidência. Nisso se incluem as doenças geradas pelo desemprego, pela desesperança, pela fome, muitas delas de natureza mental, aí incluídas a depressão, a adição a drogas, o suicídio – e até mesmo a desnutrição. Mas além delas, apontam diversos estudos prospectivos de carga de doença, a AIDS; as condições ligadas ao estilo de vida (decorrentes do tabagismo e do alcoolismo e do tabagismo); as condições crônicas de maneira geral (diabetes, câncer, artroses, obesidade), além das violências, traumatismos e doenças profissionais em geral.
O SUS tem um baita problema pela frente, esta é a verdade. Para ver algumas ideias para resolvê-lo, veja textos desse blog nos links a seguir.
• https://saudenodfblog.wordpress.com/2021/03/11/sobre-a-qualidade-no-atendimento-em-saude/#more-2109
• https://saudenodfblog.wordpress.com/2021/04/23/e-depois-do-covid-o-que-vira/
• https://saudenodfblog.wordpress.com/2021/03/03/covid-nao-e-so-uma-questao-de-alcool-gel-vacina-e-isolamento/
• https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/10/15/um-dia-tudo-isso-vai-passar-uma-proposta-de-agenda-de-acao-em-saude/
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Saiba mais:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cecilia-machado/2021/04/o-novo-normal-do-trabalho.shtml?utm_source=mail&utm_medium=social&utm_campaign=compmail
https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/04/10/harvard-aponta-reducao-de-quase-dois-anos-na-expectativa-de-vida-no-brasil
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/02/desemprego-na-covid-supera-o-pior-da-mais-longa-recessao.shtml#:~:text=O%20Brasil%20encerrou%202020%20com%20a%20pior%20m%C3%A9dia%20de%20desemprego%20da%20hist%C3%B3ria.&text=Segundo%20dados%20do%20IBGE%2C%20o,ficou%20em%2013%2C5%25.
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A última do psicopata: voltou a falar em cloroquina, em resistir ao STF e atacar a China. Passou da hora para que um tipo assim seja retirado de circulação – e que a a jaula seja robusta! Faço votos para que a fabricação de camisas de força ainda esteja ativa, apesar da grande demanda por máscaras atualmente no país. Devem ser os mesmos fabricantes de uma coisa e outra, não?
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Diante dos acontecimentos da semana (chacina no Jacarezinho e pronunciamentos dos psicopatas federais) só resta concordar com Guimarães Rosa: mundo que não muda nunca, só de hora em hora piora. Até quando, Senhor Deus dos desgraçados?
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.