Dr. Flávio de Andrade Goulart*
Nesta semana completam-se 8.898 mortes por covid aqui no DF; 482.019 no Brasil. Enquanto isso o psicopata sem-noção, boquirroto, mentiroso e genocida passeia de moto, prega contra máscara e a favor da cloroquina, favorece a contaminação em “rebanho” (não apenas do seu), ridiculariza seu Ministro da Saúde, além de insistir em fazer “piruadas”, seja lá o que isso for. E a CPI começa a puxar fios incômodos, ao mostrar que por trás de tanto empenho na recomendação da droga aparecem interesses econômicos escusos de amigos do clã presidencial. Burrice ou método? Ignorância ou má fé? Antes pensei que podia ser apenas desinformação e limitação intelectual, mas hoje vejo que é a combinação de tudo isso. E como se não mais fizesse diferença, uma jovem negra, Kathleen, com um filho na barriga, teve sua vida ceifada no Rio de Janeiro, pela Polícia ou pela Milícia, tanto faz, que hoje no Brasil são quase a mesma coisa. Realmente, não dá mais pra aceitar coisas assim. Já sabemos quem pariu, mas já passou da hora de parar este monstro e todas as suas crias!]. Mas o assunto do dia é PARTICIPAÇÃO, palavra de muitos usos. “Participação em saúde”, é um bom exemplo…
Para início de conversa, acho que a lei 8.142, dita “Orgânica do SUS”, que apregoa como atributos da participação em saúde a paridade e o poder deliberativo, já se esgotou. Tal poder não é verdadeiro e a tal da paridade muitas vezes é antidemocrática. Mas tem mais… A participação social em saúde, que os militantes chamam triunfalmente de “controle social” acumula, em seus quase trinta anos de história alguns equívocos que merecem, sem dúvida, um reboot. São eles: a) a autonomização, que levanta a expectativa de que nos conselhos de saúde residiria, de fato e de direito, um quarto poder; (b) a plenarização, que os quer transformar em fóruns de debates entre os diversos segmentos sociais, procurando minimizar a presença (e a atuação) do Estado; (c) a parlamentarização, ou seja, a formação de blocos ideológicos e partidários com tomadas de decisão por voto, não por consenso; (d) a profissionalização, que abre caminho para militantes full-time, excluindo outros menos devotados, embora também interessados; além de certa (e) auto-regulação, uma particularidade praticamente exclusiva da área da saúde.
Somam-se a isso alguns traços políticos, como as tendências sindicalistas e leninistas (“todo poder aos sovietes”), que acabaram por cunhar a expressão ilusória do “controle social”. Isso pode não ser, nos dias atuais, o mais adequado para a definição e a manutenção de instrumentos de participação, em uma sociedade muito mais complexa e plural do que aquela que existia quando tais estratégicas políticas foram concebidas. O fato é que quando se fala em autonomia, paridade e poder deliberativo, como está na lei orgânica do SUS, deve ser reconhecida enorme distância entre o idealizado e o real, ou entre o ideológico e o jurídico-administrativo. Isso sem dúvida acarreta prejuízos notáveis para as práticas de participação tais como as conhecemos na saúde, acarretando ilusões, desperdício de energias e até mesmo certo transformismo, naquilo que procura mostrar o que não é e nem existe de fato. De fato, a tal da participação social não é uma panaceia (o que se dirá, então, daquele pretenso “controle”); antes representa um processo oneroso para o cidadão comum e que costuma ser apropriado e mantido por determinados grupos sociais, como funcionários públicos, letrados, pessoas mais velhas, homens, militantes políticos. São coisas pouco mencionadas na literatura brasileira sobre o tema, de maneira geral escrita por militantes. Mas tem mais…
Li recentemente um artigo de Ricardo Abramovay (ver link), professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP no qual ele defende, baseado na literatura de sua área e em vastas evidências internacionais, que o homem comum e profano, o famoso leigo, também tem condições de opinar em questões científicas. Se vale para ciência, energia e ambiente, como ele propõe, por mim há de valer também para a saúde, ora pois.
Mas ele inicia seu raciocínio com relativa cautela e pondera se apenas as nossas intuições e opiniões, os nossos pontos de vista não ultrapassariam um “eu-achismo” rudimentar. Apoiar algo assim, ainda mais quando ciência e tecnologia estão em jogo, não seria só imprudente, mas também bastante perigoso. E prossegue: “Tomar decisões com base na opinião imediata das pessoas é um gigantesco risco para a própria estabilidade das relações políticas em qualquer sociedade. Esta é uma das razões que explica a existência não só da Constituição, mas de outros órgãos do Estado que não dependem do humor instantâneo da opinião pública.[…] Ao mesmo tempo, limitar a escuta social ao que dizem as urnas a cada dois anos tampouco ajuda no enfrentamento de nossos maiores desafios, e faz com que só elites especializadas participem das decisões, ainda mais quando esses desafios envolvem ciência e tecnologia” – e eu acrescento: vale claramente para a saúde também, na qual, afinal, estão presentes questões que dependem essencialmente de ciência.
Abramovay recorre a artigo publicado na revista Science (ver link), uma das mais prestigiadas do mundo (não é daquelas que a Dra. Yamaguchi costuma ler) que trata exatamente da “consulta cidadã” sobre nada menos do que (adivinhem…) o genoma humano, mostrando bons resultados de tal processo. Aliás, lembra ele, já existe vasta experiência com tais técnicas de ausculta aos cidadãos comuns em debates científicos, que já se contam às centenas, segundo trabalho recente da OCDE (ver link). Como exemplos, a França realizou recentemente uma “Convenção Cidadã para o Clima” com 149 propostas práticas de políticas públicas (link); o UK realizou um processo semelhante e nos EUA foi formada, em 2010, uma rede de Avaliação por Especialistas e Cidadãos sobre Ciência e Tecnologia (link).
Existem diversas técnicas para esta escuta qualificada, com foco em questões políticas diversas. A grande surpresa é que tais fóruns não possuem a característica que lhes é dada no Brasil, com representantes formais de entidades diversas (nem todas devidamente qualificadas, diga-se de passagem), mas sim (pasmem-se mais uma vez!), de cidadãos sorteados de forma aleatória. Estes depois de debaterem com intensidade vão, por sua vez, convocar os especialistas no tema para ajustar a proposta final. Os especialistas, então, respondem às perguntas dos leigos que assim adquirem informação mais qualificada. Na sequência os cidadãos comuns debatem entre si e se obrigam a ouvir aqueles que têm opiniões diferentes. Sem dúvida, é um fértil e pedagógico exercício de tolerância e apreensão da realidade, totalmente contrário à polarização irracional e desinformada (coisa de que atualmente, no Brasil, padecemos com enorme custo social e político).
Sobre esta polêmica escolha por sorteio, acredita-se que nela seria mais expressiva a diversidade social do que, por exemplo, nos parlamentos – e nos conselhos de saúde, por que não? – o que não significa que tal assembleia de cidadãos sorteados tenha o monopólio da representação política. Esta modalidade de seleção, favorece, além do mais, as chances de que aí estejam presentes os mais diferentes pontos de vista, configurando um caminho para avaliar diferentes lados de questões complexas.
Diante de informações assim, parece risível se manter como mecanismo de participação social aquelas fórmulas burocráticas, tipicamente anos 80, oferecidas pela Lei Orgânica do SUS. Aquelas conferências de saúde “paritárias” e “deliberativas”, por exemplo. Aqueles conselhos formados por representações burocráticas. São coisas que possivelmente já estariam superadas em outros países, mesmo antes disso. Neste campo, penso que devemos nos esforçar para deixar de “fazer mais do mesmo”, em troca de inovar concretamente naquilo que sem dúvida representa uma das mais importantes inovações introduzidas na administração pública contemporânea, quais sejam os mecanismos de instrumento de participação social. Processos de ausculta qualificada e escolha de cidadãos a partir de requisitos menos formais, tais como seu interesse direto, seu grau de informação ou mesmo sua representatividade estatística deveriam ser testados.
Seguem algumas ideias, que já defendi em texto anterior (ver link):
1. Inclusão de novos atores, espaços e instrumentos de participação, de modo a compor um quadro compatível com uma “nova gramática social”, ao mesmo tempo com ultrapassagem e superação do formalismo vigente.
2. Ênfase especial conferida às tecnologias da informação, que compõem um cenário de ferramentas participativas diversas, de baixo custo e ampla assimilação contemporânea.
3. Necessidade de valorização cada vez mais ampla do saber profano e da lógica do usuário face ao domínio habitual do conhecimento dos técnicos e dos especialistas.
4. Ampliação do sentido da “deliberação”, ampliando-o e revitalizando-o, em termos do alcance coletivo do processo e também das possibilidades de debate e troca de argumentos, com foco na produção de decisões justas e corretas, com participação ativa e refletida dos atores sociais, mediante processos que não produzam apenas a unanimidade, mas sim a revelação da razão pública e seu atrelamento à vontade coletiva.
5. Melhor compreensão do fenômeno da participação dentro de um panorama mutante, de reduzida estabilidade e imprevisibilidade das condições de vida e de trabalho da população, com seu cortejo de precariedade, fragmentação social, volatilidade das relações, segregação urbana, além de confrontos culturais diversos.
6. Da mesma forma, apreensão, compreensão e sistematização dos diversos componentes pedagógicos e conscientizadores, bem como as possibilidades de trocas racionais e intersubjetivas de argumentos nos momentos deliberativos, característicos das boas práticas participativas, dentro de um contexto de ausculta qualificada e participação informada.
7. Enfrentamento dos dilemas da crise da representação política, ou seja, o reconhecido distanciamento entre representantes e representados, com o advento de estratégias que promovam o aprimoramento de tal representatividade, a capilaridade dos efeitos deliberativos, bem como, a maior equalização das oportunidades de participação.
8. Valorização do protagonismo social nas experiências participativas, com incorporação de boas práticas inovadoras acrescidas de ações complementares para garantia de sustentabilidade dos processos participativos.
9. Distinção de escalas micro e macro nos processos participativos, admitindo-se as diferentes lógicas inerentes a elas, com maior ênfase na escala microterritorial, na qual os atores participantes estarão engajados em repertórios diversos de controle de políticas públicas que lhe dizem respeito, embora não necessariamente orientados de forma setorial.
10. Foco no surgimento de novos instrumentos de deliberação, por exemplo: ausculta “informada” aos desejos e demandas dos cidadãos; interação construtiva, soluções inovadoras e criativas; técnicas de resolução de conflitos, além de outras.
Em suma, é preciso ampliar o sentido daquele “poder deliberativo” apenas formal que está na lei 8.142, para o que se faz necessária a extrapolação da moldura normativa vigente, com a criação de novos fóruns de debates, tais como comitês, conselhos de unidades, grupos de cidadãos, estratégias de mobilização massiva, novas formas de democracia direta, utilização intensiva de tecnologia de informação, mecanismos pontuais de consulta, arregimentação de interesses de grupos específicos. Paridade? Isso é meramente um arranjo para garantir decisões tomadas por voto, em disputas ferrenhas, não por consenso ou argumentação para convencimento amplo e duradouro. Assim, defendo a busca de arranjos participativos diversificados que ponham em destaque a magnitude e a variedade de múltiplos atores e um conjunto de problemas inéditos nos registros originais da participação social, tais como a pauta relativamente restrita das demandas por mais inclusão e autodeterminação.
Fiquem tranquilos. Não estou propondo cancelar a participação social que a Constituição assegura na Saúde. Mais do que isso, defendo seu aperfeiçoamento, através de modalidades de participação informada, qualificada e cidadã, ao invés desse “controle social” pretensioso, ilusório e burocrático.
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.