Dr. Flávio de Andrade Goulart*
Se há uma coisa sobre a qual os saudosistas se enganam é no que diz respeito às condições de saúde da população, no Brasil inclusive. Em relação a governos passados, certo saudosismo até faz sentido. Isso pelo menos até o aparecimento da pandemia de covid e de seus agentes propulsores, principalmente os de natureza política, mais ainda do que os biológicos. Aqui no Planalto Central, por exemplo, temos hoje condições de saúde muito melhores do que à época da construção da cidade, quando a mortalidade infantil no país chegava ou até passava de 100 por mil nascidos vivos (hoje em média é 22, mas em algumas localidades não passa de um dígito) e a expectativa de vida pouco ia além dos 50 anos (hoje ultrapassa os 72). E assim como estes indicadores, muitos outros. É certo que alguns tipos de câncer, os traumatismos, as doenças mentais e as condições ligadas ao estilo de vida estão em ascensão nos dias de hoje – nada é perfeito. Mas a verdade é que, em termos proporcionais, morre (e nasce) muito menos gente do que no passado. Encontrei algumas informações interessantes sobre tal assunto, não da época da fundação da cidade, mas de ainda muito antes, quando esteve aqui a Missão Cruls, encarregada de fazer as primeiras demarcações do DF, na última década do século XIX. Assim, fugindo à regra dos últimos tempos, não comentarei nada sobre a atual pandemia de Covid, embora, infelizmente, continue a falar de doença e morte. Sinto muito.
Tudo começa em 1892, quando o Presidente Floriano Peixoto instituiu a Comissão Exploradora do Planalto Central, a fim de demarcar o local onde viria a ser construída a futura capital do País. O documento assim produzido, denominado Relatório Cruls, representa uma completa reportagem sobre o Planalto Central, abrangendo aspectos físicos, climáticos, históricos, sanitários e culturais diversos. Alguns o consideram até mesmo um verdadeiro testemunho de impacto ambiental, o primeiro em toda a história do Brasil. Seu coordenador, Louis Cruls (1848-1905), era um engenheiro e geógrafo belga, homem de ciência no velho estilo, que veio para o Brasil em meados do século XIX, exercendo, entre outras tarefas, a direção do Observatório Imperial do Rio de Janeiro, trazendo importante contribuição ao desenvolvimento da cartografia e da astronomia no País.
O Relatório Cruls que tenho em mãos é uma primorosa edição do Senado Federal em fac símile, grafado no português da época, com quase 400 páginas, repleto de gráficos, tabelas e mapas. As informações sobre saúde estão em seu anexo IV, intitulado Do Planalto Central do Brasil, de autoria de certo Dr. Antonio Pimentel, médico hygienista da comissão. A missão Cruls teve também a participação de A. Glaziou, botânico diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e além deles, de diversos astrônomos, médicos, farmacêuticos, botânicos, geólogos e pessoal auxiliar, num total de 22 integrantes. A finalidade da expedição não era simplesmente a demarcação de uma área, mas a produção de um diagnóstico científico da região que deveria abrigar a futura capital. Em meados de 1892 a expedição partiu do Rio de Janeiro, primeiro de trem e depois a cavalo, numa viagem que durou, no total, cerca de nove meses.
Antes de mais nada é preciso reconhecer que a ciência da época era outra. Embora Pimentel pudesse se valer de teorias pasteurianas, já vigentes à época, ainda existem no texto não poucas referências baseadas nas teorias miasmáticas, por exemplo, quando fala do paludismo, como era conhecida a malária na ocasião, embora seu agente etiológico e seus mecanismos de transmissão tenham sido descritos na mesma época, mas provavelmente ainda não conhecidos pelo autor. Voltarei ao tema mais adiante.
Uma estatística pathologica revelada ao final do texto mostra que os problemas de saúde mais frequentemente encontrados na região, segundo observações diretas do autor, feitas e a partir de uma centena e meia de pacientes que examinou, eram dyspepsia, bouba, neurastehenia, bronchite, syphilis, leucorrhéa, paludysmo e hypohemia intertropical. Alguns desses problemas, como é o caso desta última condição, já não é possível saber exatamente do que se trata e para a maioria deles os termos são um tanto imprecisos, misturando meros sintomas com doenças de etiologia já então conhecida, ou ainda não.
Por falar em etiologia, além do desconhecimento desta em relação à malária, verifica-se que o mesmo acontece em relação ao à maioria das condições assinaladas. O bócio, por exemplo, que não comparece entre os problemas mais frequentes é ainda considerado de causa obscura, sendo mais tarde, após os trabalhos de Carlos Chagas, no século XX, atribuído erroneamente ao T. cruzi. O que o autor chama de dyspepsia, por exemplo, é atribuído vagamente a problemas alimentares, sem que se avance qualquer conclusão em relação à possível participação de agentes etiológicos já conhecidos na época e que poderiam perfeitamente justificar tal quadro, ou seja, as infestações por vermes nematelmintos e platelmintos, além de outros agentes biológicos, de alta incidência nos brasileiros de então.
A noção de raça, em pleno apogeu na época (vide Euclides da Cunha) recebeu também seu quinhão de importância, assim como o clima e a geografia. Entretanto, sobre a importância real da raça, Pimentel apenas a cita, mas não detalha muito suas impressões. Contemporâneo que era do autor de Os Sertões pode ser que não tenha se atrevido a penetrar em tal território explicativo, que este último desbravou com intensidade – embora desmentido mais tarde pelo desenvolvimento da Ciência. Sobre o clima e geografia, contudo, faz um voo mais amplo, mesmo sem maior aprofundamento, ao citar como possíveis fatores influenciadores da saúde e da doença da população a altitude dos chapadões centrais, as condições meteorológicas e atmosféricas, as influências mesológicas, a qualidade das águas e até mesmo a força e a direção dos ventos. Numa frase ele fala da bondade do clima nessas paragens.
Mesmo sem identificar ainda a natureza nutricional do bócio, refletindo os parcos conhecimentos da época, o autor confere grande valor ao fator nutricional como causa de variadas doenças. Assim coloca tal fator como desencadeante ou agravante de uma série de condições, tais como as dispepsias, a neurastenia, o artritismo, a anemia, clorose e até mesmo a dismenorreia feminina. Mas não fala da possibilidade de associação etiológica das tais dyspepsias com os vermes intestinais. Ainda desenvolvendo tais teorias de fundo nutricional, atribui como fatores de agressão ao organismo a condimentação exagerada das comidas por parte da gente do sertão, o pouco cuidado com a água de beber, além da falta de noções elementares de higiene. São reflexos das teorias higienistas de então, que inclusive qualificam o cargo que tal médico redator tinha na Missão Cruls.
Ainda sobre o bócio, reconhecidamente um flagelo histórico no Brasil Central, só revertido com a iodetação compulsória do sal de cozinha, na década de 50 do último século, o autor o trata quase como um fenômeno natural, dada a grande quantidade de papudos que observou na região. Não faz menção direta, contudo, aos portadores do cretinismo, a não ser que assim consideremos os casos de idiotia que enumera em sua estatística. Tentando uma aproximação etiológica identifica como prováveis causas do problema uma série de eventos de natureza miasmática: intempéries, águas, alimentos. Faz o curioso relato de um paciente de Pirenópolis que viu seu papo reduzido e mesmo se tornado assintomático quando passou algumas semanas fora de seu ambiente habitual, indo para Goiás Velho.
O autor dá grande destaque à sífilis e às doenças venéreas, sem fazer ilações moralistas. Descreve alguns casos de sífilis, principalmente formas avançadas da mesma, com possíveis acometimentos cardiológicos e cerebrais. Como provavelmente seus diagnósticos eram eminentemente clínicos, é de se supor que algumas formas cardíacas da Doença de Chagas, na época ainda desconhecida, tenham sido equivocadamente atribuídas à sífilis. Ainda neste quesito, o autor faz referência a dois casos que pôde tratar, tendo observado melhoras nos mesmos no decorrer de poucos dias. É de se desconfiar, contudo, da total veracidade de tais observações, pois as formas crônicas de tal doença não cederiam tão rapidamente a tratamentos e além do mais, à época, a utilização dos sais mercuriais certamente provocaria reações colaterais que não seriam condizentes com um sucesso tão grande. Efeito cloroquina, talvez… Também nestes casos sugere haver correlação dos mesmos com distúrbios de natureza nutricional.
O que o autor denomina de neurastenia é um dos tópicos dominantes de suas reflexões. Como em outras situações, não se aventura a definir para a mesma quaisquer hipóteses etiológicas. Mas a identifica com um cortejo de sintomas bem conhecidos, inclusive nos dias de hoje: melancolia, tristeza, hipocondria e também indecisão. Relata, inclusive, curioso caso observado em Formosa-GO, em que um desses ditos neurastênicos padecia de tal grau de indecisão em suas atitudes mesmo cotidianas que teve que adiar sucessivamente uma viagem, por não conseguir marcar seu dia ou mesmo iniciá-la de fato, ao ponto de ter combinado com amigos que o levassem à estrada, mesmo contra sua própria vontade.
Sobre o paludismo, que vem a ser a malária atual, em determinado ponto de sua narrativa, reputa-a como muito rara na região, embora a mesma compareça em sua estatística com um total de quatro casos, número superior ao de outras moléstias relatadas. Professa, em relação à mesma, certo grau de determinismo geográfico ou mesmo miasmático, ao localizá-la em algumas regiões “boreais”, numa faixa correspondente ao chamado “mato grosso” de Goiás, de Pirenópolis a à Cidade de Goiás. Embora desconheça (ou omita) o conhecimento de sua etiologia, entretanto já definida à época, preconiza medidas de saúde pública corretas e que considera factíveis para sua erradicação, tais como a drenagem de pântanos e lagoas, afirmando mesmo que a presença de tal doença na região não deveria ser considerada como empecilho para a eventual localização da futura capital. Aponta ainda como focos da mesma na ocasião as regiões do Vão do Paranã, Mestre D’Armas (no município de Formosa, atual Planaltina) e também no Rio Corumbá.
A saúde feminina também faz parte das preocupações de Pimentel, mas sem qualquer palavra sobre as condições da gravidez e do parto, do puerpério e do período neonatal. Foca sua análise nos casos de leucorreia e dismenorreia que examinou, onze em 150, colocando-os como prioridade. Ele as separa nas categorias de “congestiva’ e “nevrálgica”, seja lá o que isso for. Mais uma vez correlaciona tais condições com a má alimentação e também com “sedentarismo”, o que é um tanto duvidoso, pois se tratavam de mulheres pobres que certamente tinham um cotidiano de dura lida.
A estatística apresentada pelo autor sem dúvida apresenta algumas curiosidades, por exemplo, ao arrolar, embora em pequeno número, casos de “facada”, ”tiro de garrucha”, mordedura (sic) de cobra, senectude, “hystero-epilepesia” e onanismo (!). Ele cita também três casos de “idiotia”, que podem bem ser derivados da insuficiência de iodo na gestação, como já comentado acima. E as verminoses aparecem agora, mas apenas com o registro de um único caso.
Questão não abordada é a da assistência médica disponível naquele momento, mas que podemos supor ter sido muito precária, naturalmente. Perscrutando mais profundamente tal assunto nos registros históricos das cidades mais antigas da região, tais como Luziânia, Cristalina, Planaltina e outras, tal assunto poderá ser esclarecido. Entretanto, me faltou fôlego para tanto, mas encontrei no magnífico livro de Paulo Bertran (ver citação abaixo) um texto que certamente joga luz sobre a questão, embora com foco em Paracatu, cidade que se diferenças tem em relação a suas irmãs mais ao Norte, certamente seriam para melhor, mas mesmo lá, como se verá a seguir, a situação era bastante precária. O relato abaixo, citado por Bertran, é do médico e naturalista europeu Johann Emmanuel Pohl, que percorreu a região ainda na primeira metade do século XIX. Vejam o que ele disse:
Quanto à assistência médica os habitantes dessa cidade são dignos de dó. Não possuem médico nem farmácia. Os comerciantes vendem a alto preço alguns remédios simples, estragados, de jalapa, ipecacuanha, ruibarbo, quina de má qualidade, ópio, cânfora, mercuriais e outros. Quem tem a infelicidade de adoecer não pode contar uma possível assistência. Os remédios domésticos usuais são tomados em tal quantidade que só podem apressar a morte.
Desse tempo para o atual muita coisa mudou, evidentemente.
De que se adoece e morre no DF hoje, afinal?
Em primeiro lugar, comparativamente às demais UF, o DF tem baixa taxa mortalidade geral, registrando também uma das mais baixas taxas de mortalidade infantil no país, se aproximado de um dígito em algumas regiões. As causas de óbito seguem um padrão esperado, com predomínio de doenças crônico-degenerativas, chamando atenção o grande número de óbitos por mortes violentas (a maioria evitáveis) incidindo com predominância absoluta no sexo masculino. São indicadores, enfim, que sugerem condições sociais e assistenciais de razoável a boa qualidade, fato correspondido pela melhora consistente no quadro geral de mortalidade nos últimos 30 anos.
Há algumas considerações a acrescentar. A costumeira argumentação que os sistemas de informação são precários e não permitem grandes inferências não é totalmente válida; ao contrário, é possível, sim, fazer predições significativas a partir dos dados disponíveis, devendo ser ressaltada a melhoria progressiva de tais sistemas, o que pode ser atestado pela baixa percentagem de óbitos não notificados e redução do tópico “sintomas e sinais não esclarecidos”.
Especial destaque deve ser dado ao fato que tais dados já foram, na origem, ajustados por moradia, significando que se trata, realmente, de mortalidade local e não “importada“. Os dados revelam-se coerentes, também, quando cotejados com outras informações disponíveis, por exemplo, a progressiva expansão de serviços de saúde que ocorreu no DF nas últimas décadas, em especial a imunização, aspectos particularmente notáveis nas décadas de 80 e 90;
Há que se estar atento, ainda, para a emergência de novas situações capazes de alterar o perfil da mortalidade, como, especialmente, a atual pandemia de Covid, mas também as infecções por bactérias multirresistentes, além de outras situações. Tal redução da mortalidade, como verificada no DF, dependeria, sem dúvida, de avanços tecnológicos, mas neste campo deve também ser incluído o advento da tecnologia de assistência, com o crescimento da atenção primária. Da mesma forma, deve-se incluir as chamadas causas de internação e morte por condições sensíveis à atenção básica, um indicador muito sensível de bom funcionamento do modelo assistencial local.
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.