Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Dia desses fui vacinar contra Influenza, eis que já tinha tomado minhas duas doses regulamentares da Coronavac. Procurei o Centro de Saúde da 905 Norte, o mais acessível para mim naquele momento. Lá chegando, levei um susto, pois uma área enorme da W4 Norte, em frente à unidade e adjacências, estava inteiramente ocupada pelos caraterísticos cones laranjas do Detran-DF (vejam foto), impedindo que se estacionasse veículos nas proximidades. Ou seja, o acesso a uma vacina de interesse especial para idosos, que nem sempre têm facilidade em se locomover, estava sendo bloqueado ou pelo menos dificultado naquele momento. Burrice, descuido ou má fé? Ou tudo isso junto, como soe acontecer no país ultimamente. Seja lá o que for, o que se via ali era uma oposição ou desconexão entre uma ação da área de trânsito e outra de saúde. Quantas vezes assistimos coisas assim em nosso dia a dia? Outros exemplos de tais desencontros infelizes: os Tribunais de Contas que por pequenas falhas contratuais embargam por meses ou anos a fio obras em rodovias, justamente em trechos que costumeiramente geram acidentes que matam dezenas de pessoas por ano; as escolas que permitem que se vendam em suas cantinas refrigerantes adoçados, guloseimas ultraprocessadas e todo tipo de alimento nocivo para a saúde de crianças – e ali supostamente se educa!; o Ministério Público e outros órgãos de fiscalização, que cancelam contratos apenas por idiossincrasias ideológicas ou interpretação facciosa da legislação, prejudicando assim o atendimento a milhares de pessoas (como já se tentou fazer, por várias vezes, com o Hospital da Criança de Brasília). Como se vê, o Detran-DF não está sozinho em ações assim tão irracionais. E se a própria direção da unidade tiver pedido tal bloqueio? Pior ainda… O problema, neste caso, seria de incompetência ou falta de noção, não de integração. Como ficamos diante disso?

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Há outros exemplos de desencontros sérios. A atuação das polícias e do próprio Judiciário na questão das drogas, privilegiando a repressão e encarceramento, ao invés de medidas sanitárias adequadas, já vigentes em muitas partes do mundo. Ou ainda a fragmentação do controle de alimentos, deixando os de origem animal com o Ministério da Agricultura, sabido escritório de interesses do agronegócio e não com a Anvisa, sob a esfera da Saúde. Para não falar da irracionalidade da atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar como um Ministério da Saúde paralelo, dominado pelas empresas de planos de saúde. É coisa que não acaba mais.
Há preocupação internacional com este tipo de fragmentação, competição antagônica ou duplicidade das políticas, hoje em dia. A Organização Panamericana de Saúde (OPAS), escritório regional da OMS, por exemplo, vem propondo e divulgando, já faz tempo, diretrizes relativas ao que denomina, de Saúde em Todas as Políticas (ou HiAP – Health in All Policies), visando dar conta de tal desafio, em conjunto com os países membros. Assim, conceitualmente, a estratégia de Saúde em Todas as Políticas (em português STP) representa, “uma abordagem de políticas públicas em todos os setores que sistematicamente leva em conta as implicações das decisões para a saúde, busca sinergias e evita impactos prejudiciais à saúde a fim de melhorar a saúde das populações e a equidade na saúde”, constituindo também uma iniciativa colaborativa que visa melhorar saúde, incorporando considerações de saúde na tomada de decisões em todos os setores e áreas de política.
Tal estratégia não é nenhuma novidade; ao contrário, possui longa tradição, tendo sido experimentada e testada em todo o mundo, em nível nacional e local, compartilhando uma base sólida em valores como inovação, boa governança, equidade e participação, articulando-se, além do mais, com bases práticas já consagradas, por exemplo, de atenção primária à saúde (APS), de promoção da saúde e de comunidades saudáveis. Na verdade, tal linha conceitual tem origem já no século XIX, quando o francês Louis-René Villermé (1840) demonstrou os efeitos adversos à saúde de certos tipos de trabalho e ocupações e o alemão Rudolph Virchow (1848) reconheceu a importância crítica do setor da saúde e de seus profissionais para lidar com a injustiça social. Deste último é uma expressão que se tornou famosa: a medicina é uma ciência social e a política nada mais é do que medicina em grande escala. Assim, não só a medicina como as demais profissões da saúde e também os agentes políticos, legisladores, membros do judiciário e tomadores de decisões, têm a obrigação de conhecer os problemas coletivos de saúde como de tentar encontrar os meios para sua solução, sem duplicidades e antagonismos.
Porém, não são só as decisões de alta cúpula fazem com que isso se materialize. Dentro de tal conceito, os governos locais estão bem posicionados para agir. Assim, um dos pressupostos da STP, além de tal base local, é o de que a saúde representa recurso essencial para a vida cotidiana e um ativo essencial para as comunidades, nas quais a história e as tradições do envolvimento participativo e deliberativo geralmente são mais fortes. A ação política em nível local é que pode, de fato, mitigar os efeitos negativos das tendências de globalização e fragmentação, ajudando a estabelecer bases para as mudanças necessárias.
A STP faz parte de uma abordagem sistêmica para a saúde, incluindo, mas certamente não se limitando, à promoção de estilos de vida saudáveis e de reconhecimento do impacto das demais políticas públicas na saúde, integrando assim esforços para a convergência entre saúde e desenvolvimento . Equidade, ou seja, tratar diferenciadamente os desiguais, é também uma palavra forte em tal discussão, lembrando que sem ela a saúde dificilmente estará ao alcance da maioria dos cidadãos.
Discutir saúde, hoje, é encarar de frente o desafio das novas tecnologias de interação interpessoal e comunicação e isso constitui fator importante também na STP, ao permitir ampliar conhecimentos e oferecer conexões disponíveis para não só para governos como para comunidades. Isso requer novas formas de governança para a saúde, organizadas em rede e com foco especial na ação intersetorial. Cabe lembrar que questões de saúde complexas exigem soluções e intervenções também complexas, além de orientadas por políticas de foco integral e que sejam aplicadas em múltiplos níveis.
Tudo isso tem a ver também com o lema pensar globalmente e agir localmente. Mas acima de tudo com o reconhecimento de que a saúde está distribuída de forma desigual entre as populações.
Como se vê, a questão da fragmentação das ações política em saúde não é intrínseca ao setor saúde. Combater a duplicidade, a irracionalidade, a competição predatória, o desperdício, a ineficiência das políticas públicas é um desafio muito maior. Exige competência e decisão dos vários níveis de governo e das esferas de poder, além da inclusão de atores sociais variados no processo.
Um dia chegaremos lá com certeza, mas até que isso aconteça, infelizmente, vamos esbarrar em múltiplas barreiras, como aquelas colocadas pelo Detran junto ao CS 05 da Asa Norte, além de outras ainda piores em suas consequências.
E por falar na interação de políticas de trânsito e mobilidade com saúde, não custa nada fazermos um exercício de imaginação para vislumbrar algumas possibilidades de ação:
1. O Detran-DF poderia transferir seu esforço em bloquear portas na área de saúde para atuar de forma mais firme e constante na porta das escolas, onde muitas crianças e familiares são ameaçadas e atropeladas por motoristas imprudentes.
2. Uma parte dos valores apurados com multas de trânsito deveria ir para os fundos de saúde, particularmente nos municípios.
3. Da mesma forma, parcelas do recolhimento do IPVA e das demais taxas sobre automóveis e transportes em geral, inclusive combustíveis, deveriam ter tal destino, de forma mais ampla (Fundo Nacional de Saúde).
4. Motocicletas deveriam ter um seguro extra obrigatório, para cobrir eventuais despesas com a saúde dos condutores, especialmente aquelas de natureza incapacitante e de longa duração.
5. As penas para motoristas infratores, seja em caso de culpa ou dolo, deveriam ser agravadas e no seu conteúdo deveria estar a obrigatoriedade de visitar e interagir com pacientes internados em serviços de assistência ao trauma e também assistência financeira às famílias.
6. Revisão do atual Código Nacional de Trânsito, aumentando a gravidade de ocorrências que levem a ferimentos ou morte de terceiros, agravando as penas para motoristas alcoolizados ou que dirijam sem condições regulamentares de habilitação (ao contrário do que preconiza o atual presidente da República).
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Saiba mais: https://www3.paho.org/hq/index.php?option=com_content&view=article&id=9361:2014-welcome-health-all-policies&Itemid=40258&lang=en#:~:text=Health%20in%20All%20Policies%20(HiAP,populations%20health%20and%20health%20equity%22.
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Minha contribuição para entender (para rejeitar) o bolsonarismo (I)
Em remoto país, um jornalista foi designado para cobrir acontecimentos que movimentavam os territórios interiores, nos quais despontava a figura de um líder terrível, seguido por massas por ele fanatizadas e uma verdadeira guarda pretoriana que o guardava de quaisquer perigos, tudo isso no âmago de uma realidade terrivelmente pobre e inculta. Recorro aqui à sua narrativa original. Acesse: https://veredasaude.com/2021/06/29/antonio-conselheiro-e-jair-messias-algo-a-ver/
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Enquanto isso a Covid mostra a que veio…
Nesta semana, no DF, 690 casos novos e 9263 mortes no total; no Brasil, respectivamente 65.163 casos novos e mais de 520 mil mortes. Leitos de UTI ocupados, por aqui, públicos 58% e privados 83,5%. Esquema completo de vacinação no DF 345 mil pessoas (cerca de 15% da população).
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E não é demais lembrar: IMPEACHMENT JÁ!

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.