Cesar Vanucci *
“Prática atentatória à dignidade feminina.”
(Crítica estampada em jornais, na década de 50,
ao pioneirismo das atletas araguarinas)
Acompanhando pela televisão, dia desses, peleja futebolística entre as seleções femininas do Brasil e Canadá, em preparativos para as Olimpíadas de Tóquio, onde os dois times voltarão, provavelmente, a se confrontar, bateram-me forte na memória velha de guerra imagens dos começos dessa prática esportiva entre nós, geradora de espanto e críticas acerbas na época, ou seja, há mais de meio século. Reconto o que aconteceu.
Anos 50. As mulheres de Araguari deram o primeiro passo. Melhor dizendo, o primeiro chute. Pagaram pesado tributo pelo ousado pioneirismo. O desafio às regras acabou virando caso de polícia. Suscitou condenações amplas. Até o “Correio Católico”, de Uberaba, diário com 13 mil assinantes, famoso pelo seu comprometimento com mudanças sociais, tomou partido contrário às atletas araguarinas. Inseriu na linha editorial críticas ao futebol feminino. Este escriba mesmo andou arrancando algumas tiras das teclas gastas da Remington portátil para recriminar “a prática atentatória à dignidade feminina”. (Abro parêntese para confessar, em lisa verdade, que me arrependo pacas dessa atitude retrógrada, machista a mais não poder, como tantas outras que, debaixo da indiferença e complacência gerais, ocorriam costumeiramente nos anos anteriores ao advento da pílula e outras benfazejas conquistas no reconhecimento dos direitos femininos. Fecho parêntese, com alívio).
Voltando a Araguari. O jogo de bola reunia número grande de adeptas. Dava pra fazer uns três times. Não faltava às moças apoio de cidadãos influentes, não contaminados pelo vírus do machismo ou do moralismo farisaico. O mais conhecido entre eles era o excelente praça Mário Nunes, jornalista, vereador, que chegou à presidência da Câmara da simpática Araguari. Ele propagava as partidas, com entusiasmo, em resenhas remetidas para tudo quanto era jornal, das acontecências na cidade. A antiga CBD, antecessora da CBF (com sua penca de dirigentes enrolados nas malhas da Justiça), pressionada pelos protestos, entendeu de opor-se à novidade. Editou um “dogma esportivo” com o propósito de fazê-lo cumprido pelas autoridades competentes: futebol não é coisa de mulher. Que a ridícula proibição não poderia ser definitiva, os tempos e o bom senso acabariam por demonstrar. Embora ainda não estruturado nos conformes desejáveis, o futebol feminino é hoje realidade.
Consolidou-se a partir do escrete que o Brasil armou para os Jogos Olímpicos de Atenas, disputados no início do século XXI. As sucessoras das anônimas meninas de Araguari – cujos nomes não ficaram guardados na memória – deixaram marca frisante naqueles jogos. No certame e em outros torneios mostraram, exuberantemente, que o futebol é um esporte que pode, sim, a exemplo de tantos outros, ser praticado por mulheres, com a graça e leveza que lhes é peculiar, dentro de coreografia agradável ao olhar, sem se despojar da mesma empolgação das competições masculinas. Em não poucas ocasiões as meninas do futebol brasileiro encantaram multidões com eletrizantes gingas de corpo, com arrancadas inesquecíveis, numa cadência enlevantemente feminil. Reafirmaram, numa versão inesperada, a certeza de que este é mesmo o país do futebol.
Fico a imaginar que já está passando a hora da organização de um campeonato brasileiro de futebol feminino. Aposto e dou lambuja, como era costume de dizer-se em tempos de antigamente, que não faltará torcida para aplaudir os eventos.
Por derradeiro, registro que se foi possível à atleta Marta conquistar várias vezes o prêmio máximo internacional conferido a uma atleta, para isso concorreu, de algum modo o vanguardeirismo e a ousadia das meninas de Araguari, hoje seguramente vovós respeitadas e admiradas no concerto comunitário.
* Jornalista, cantonius1@yahoo.com.br