O combate ao vetor e a prevenção da dengue devem voltar o olhar para as determinações sociais

Ascom/UFU

O vírus da dengue é transmitido pela picada da fêmea do mosquito Aedes aegypti. (Foto: Pixabay)
A dengue é uma doença infecciosa febril aguda, que pode se apresentar de forma benigna ou grave, dependendo de alguns fatores, entre eles o vírus envolvido, a infecção anterior pelo vírus e fatores individuais, como doenças crônicas (diabetes, asma brônquica, doença falciforme).
O vírus da dengue pertence à família dos flavivírus e é classificado no meio como um arbovírus, o qual é transmitido pela picada da fêmea do mosquito Aedes aegypti, um mosquito diurno. São conhecidos quatro sorotipos: DEN-1; DEN-2; DEN-3 E DEN-4, todos podem causar as diferentes formas da doença. Além da dengue, o mosquito transmite as doenças chikungunya, zika e febre amarela.
A dengue está presente especialmente em áreas urbanas. Vários fatores proporcionam condições favoráveis para a proliferação e sobrevivência do mosquito Aedes aegypti, dessa forma seu controle torna-se um desafio. Dentre os principais fatores destacam-se as condições climáticas (temperatura, umidade, regimes regionais de precipitação e variações atmosféricas), socioeconômicas (condições de saneamento, coleta de resíduos sólidos deficiente, ausência de rede de água potável e de tratamento de efluentes, baixas condições de renda). Geograficamente, o A. aegypti está presente em grande parte das regiões tropicais e subtropicais, onde temperatura, umidade relativa do ar e pluviosidade são mais altas.
A pessoa infectada pela doença pode apresentar vários sintomas, como febre, dor de cabeça, dores pelo corpo, náuseas ou até mesmo não apresentar quaisquer sintomas. O aparecimento de manchas vermelhas na pele, sangramentos (pelo nariz e gengivas), dor abdominal intensa e contínua e vômitos persistentes podem indicar um sinal de alarme para dengue hemorrágica. Esse é o quadro grave que necessita de atenção médica, pois pode ser fatal.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considerou, em 2010, a dengue como uma doença negligenciada, assim como a doença de Chagas, leishmaniose, hanseníase, malária, esquistossomose, tuberculose, entre outras, que são causadas por agentes infecciosos ou parasitários e consideradas endêmicas em populações de baixa renda. Essas enfermidades apresentam indicadores inaceitáveis e investimentos reduzidos em pesquisa e em produção de medicamentos para seu controle. Doenças negligenciadas estão relacionadas à pobreza, não dá lucro para a indústria farmacêutica.
No Brasil, há uma grande preocupação com a queda em investimentos dos governos em relação às doenças negligenciadas, segundo o relatório da G-Finder 2019, sobre investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) em doenças negligenciadas. O investimento no Brasil caiu muito nos últimos anos apesar de ter crescido no mundo.
No Brasil, em relação à fabricação e criação de remédios para doenças negligenciadas, instituições públicas como o laboratório de remédios Farmanguinhos, da Fiocruz, fazem esse trabalho, mas elas ainda são poucas e não conseguem ter um nível de produção comparável ao da iniciativa privada.
A dengue nos dias atuais se encaixa na abordagem do modelo biomédico caracterizado por ser curativo, fragmentado e hospitalocêntrico. O Aedes aegypti, por ser uma espécie adaptada ao convívio com o ser humano, caminha lado a lado com as condições de vida das populações das cidades.
É de fundamental importância que, para evitarmos epidemias, tenhamos profundas transformações econômicas, políticas, sociais, não só combate aos vetores em momentos de pico da doença, e sim de mudanças estruturais, como acesso a empregos de qualidade, melhores salários, alimentação, transformação no modelo de sociedade, um modelo que compreenda onde e como estão vivendo as pessoas.
Desta forma, o combate ao vetor e a prevenção da dengue devem voltar o olhar para as determinações sociais, as quais discutem a abrangência da coletividade e do caráter histórico-social do processo saúde-doença, não colocando em foco somente discussões de dados epidemiológicos individuais. Dependem fundamentalmente de parcerias entre a população, as ações governamentais e a sociedade em geral, estabelecendo redes de mobilização social capazes de promover ações permanentes, intersetoriais, superando as dificuldades e limitações do modelo educativo pontual, verticalizado, com ações isoladas e episódicas, centradas em períodos de surtos e epidemias. Desse modo, a participação comunitária é fundamental, de forma mais sensibilizada e mobilizada, atenta nas ações de vigilância e controle dos vetores, em especial do Aedes aegypti.
As ações de comunicação devem ser veiculadas de forma diferente do que é realizada hoje. Prevalece o modelo tradicionalista de transferência de informação, a promoção do discurso de culpabilização e responsabilização do cidadão pelas infestações do A. aegypti. Desse modo, o modelo verticalizado que dita o que deve ser feito na prevenção da dengue, falha ao desconsiderar que as determinações sociais definem a territorialização da dengue no município de Uberlândia. A insistência de fazer sempre “o mesmo modelo de combate da dengue” não muda o cenário, não previne e tampouco erradica a doença.

Ciclo do Aedes aegypti mostrado a partir da captura de ovos do mosquito com a utilização de ovitrampa, armadilha para monitoramento (fotos: João Carlos de Oliveira, 2022):

Lembramos que o território é peça fundamental no reconhecimento das condições de adoecimento ou de proteção das pessoas, não só como meio em que os problemas de saúde se desenvolvem, mas a infraestrutura que ele possui a fim de proporcionar ausência de doença.É de fundamental importância atentar para as condições ambientais dos/nos territórios, verificando as variações espaciais das doenças humanas e as condições ambientais associadas a elas. As doenças estão distribuídas diante das mobilidades humanas, atentando para os tipos e frequências de contatos, ou seja, os fatores geográficos envolvidos.
Na verdade, há uma multicausalidade das doenças evidenciadas em função de um conjunto de fatores ambientais, aqui naturais e sociais. Por exemplo, os tipos e as condições habitacionais e de moradias, as questões de disponibilidades e acessos aos contextos culturais, educacionais, preconizados de forma mais intensa diante de modelos de urbanização e industrialização, muito mal/mau “consolidadas” em nossas sociedades, ampliando e intensificando as condições de riscos e vulnerabilidades das pessoas nos territórios.
Atualmente, temos que (re)pensar os modelos de vigilância em saúde. Diante disso, temos pautado as discussões e/ou reflexões em torno das doenças relacionadas a vetores nos contextos da “Comunicação e Mobilização”, norteadas pela Educação Popular em Saúde, preconizada pelo Ministério da Saúde, em 2013, ao instituir a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS), que propõe quatro eixos estratégicos: Participação, Controle Social e Gestão Participativa; Formação, Comunicação e Produção de Conhecimento; Cuidado em Saúde; Intersetorialidade e Diálogos Multiculturais.
Os estudos epidemiológicos e de vigilância em saúde reportam que as arboviroses (doenças), por meio de arbovírus (mosquitos vetores) apresentam ciclos a cada dois/três anos. Mas nestes últimos anos, parece que, de um lado, as epidemias foram mais impactantes quanto aos números e impactos na saúde das pessoas, afastamentos de trabalhos, escolas, filas em atendimentos hospitalares. Do outro lado, entre os anos de 2020 e 2021, em função da pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da covid-19, vários lugares passaram a vivenciar cenários preocupantes, particularmente com os impactos negativos, em diferentes escalas, na saúde e na economia das pessoas e das empresas, frutos de outros problemas estruturais e conjunturais em relação à gestão da Saúde Coletiva.
A pandemia da covid-19 tomou conta das reportagens, por meio das informações, com certa razão, aqui no caso das necessidades dos isolamentos, distanciamentos sociais, das práticas necessárias sobre os cuidados (modos corretos de lavar as mãos, usar as máscaras, os cuidados com as pessoas com casos suspeitos e confirmados, a importância dos testes).
Entretanto, as informações diante do debate racional foram insuficientes para despertar os interesses das pessoas, o que muitas vezes geraram conflitos de interesses entre alguns indivíduos, por este ou aquele engajamento em prol de certas causas. O modelo de comunicação foi muito mais unidirecional, no qual o receptor apenas recebeu a informação, como pouca ou nenhuma comunicação.

Mobilização
O que isso tem relações com a dengue? Na verdade, se antes a população já tinha pouca ou nada de mobilização social, neste momento as informações foram direcionadas para os contextos da pandemia, não tivemos campanhas publicitárias que clamavam a mobilização social em torno dos cuidados com a dengue.
Por isso, é importante observar que a informação, que integra saberes e fazeres, é considerada um instrumento de poder. Mas também é importante observar que a informação forma saberes e fazeres. Portanto, se informação é poder, transferi-la é dar o poder ao indivíduo, e isso não agrada os gestores. A informação é o primeiro passo para a inclusão social.
Informação e comunicação são processos que ajudam e promovem a circulação de conhecimentos, sendo processos e procedimentos educativos importantes, aumentando, na medida do possível, as mudanças de atitudes e de comportamentos acerca de alguma coisa, tornando o mundo em que vivemos mais familiar e de compreensão diante daquilo que denominamos de assimilação e acomodação dos conhecimentos, sendo estas relacionadas à percepção, representação (que é a capacidade de “comprovação e constatação”) daquilo que está sendo informado, compreensão dos conteúdos ofertados pelas informações transferidas ao realizar e desencadear ações que alterarão o comportamento do indivíduo, aqui no caso da dengue.
Informação assimilada e acomodada, é um instrumento atuante e importante nas ações de prevenção de doenças, controle de vetores e promoção da saúde. Por isso, os processos de comunicação envolvem repertórios culturais, agendas de prioridades, diferentes percepções do mundo. Mas não basta comunicar, muito menos informar o que desejamos, pois a forma como comunicamos tem histórias, aqui no caso da dengue, historicamente, a culpabilização do indivíduo, pois há uma visão dominante de que as pessoas possuem determinadas atitudes erradas e/ou equivocadas, porque não sabiam que poderiam trazer riscos para a saúde. Ou seja, a ideia que se tem é que, informando as pessoas, a partir daí, modificariam seus estilos e hábitos de vida, o que não é verdade.
No caso da dengue, nestes anos de pandemia, em determinados momentos os isolamentos e os afastamentos sociais, tivemos algumas situações interessantes e importantes a serem analisadas, abordadas e apontadas para toda a sociedade. Com um tempo maior das pessoas em suas casas com seus familiares, muitas ficaram sentadas ou “paradas” diante das TVs assistindo a inúmeras programações, muito mais em relação à covid-19, acomodadas em diferentes ambientes, ouvindo som pelo celular ou outros meios de comunicação. Praticamente nada de dengue foi apontado.
Assim, pensamos que as pessoas, em suas casas, poderiam, diante das informações, que são insuficientes, cuidar dos seus quintais, da sua casa, em relação aos criadouros. Precisamos investigar esses comportamentos!
Como já se sabe que a maioria dos casos de dengue ocorre no período do verão, as informações acontecem neste período sazonal, lógico. Só que os profissionais dos Centros de Controle de Zoonoses terão muito mais dificuldades de “controlar” os vetores. Normalmente, o “combate” ocorre por meio do famoso “Fumacê – Ultra Baixo Volume – UBV”, que é o lançamento de produtos químicos, por meio de veículos motorizados (carros, motos) e bombas costais, que apresentam procedimentos efêmeros, com pouca eficiência e eficácia, matando, na maioria das vezes, apenas os mosquitos alados (adultos). O Fumacê, na maioria das vezes, elimina de forma indiscriminada diferentes vetores e até com riscos de contaminação e reações alérgicas das pessoas. Não atinge os ovos e as larvas, que muitas vezes estão em criadouros dentro das residências. O ciclo continua, lógico que noutra dimensão.
Mas, o que tudo isso tem de relações com as determinações sociais diante da dengue? Por que a dengue ainda tem e terá os seus entornos, contornos e transtornos? Exatamente ainda pelas formas (e formatos) das informações que são, ou não, veiculadas, que apenas informam, com poucas reflexões. Por isso, necessitamos de outras formas de comunicação da informação, mais dialogadas com os diferentes segmentos da sociedade, de forma intersetorial e em redes territoriais, aqui relembrando a Política Nacional de Educação Popular em Saúde, no âmbito do SUS, com destaques para “Participação, controle social e gestão participativa; Formação, comunicação e produção de conhecimento; Cuidado em saúde; Intersetorialidade e diálogos multiculturais”.
Sendo assim, entendemos que a dengue não pode ser tratada, cuidada e controlada, apenas por meio de transmissão de informações, mas sim como um processo de ressignificação de sentidos sociais, enquanto relações interculturais, intersetoriais e mais dialogadas horizontalmente.

*João Carlos de Oliveira é professor da Escola Técnica de Saúde da UFU. Orientador no Mestrado Profissional em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (PPGAT), do Instituto de Geografia (IG/UFU). É graduado e doutor em Geografia. Atua nas áreas de Educação Ambiental, Educação de Jovens e Adultos, Dengue, Mobilização Social, Vigilância em Saúde, Educação Popular em Saúde e Geografia da Saúde.
**Gizele Martins Rodovalho tem graduação em Administração de Empresas e especialização em Gestão de Pessoas. É mestranda no Mestrado Profissional em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (PPGAT), do Instituto de Geografia (IG/UFU), orientanda do Prof. Dr. João Carlos de Oliveira com a Pesquisa “Determinação Social define a territorialidade da dengue no Município de Uberlândia”.

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