Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Meu amigo (há mais de 60 anos) Eduardo Guerra, também médico como eu e que já foi presidente do CRM-DF, sub Secretário de Saúde, além de outros cargos, preocupado com o andamento da escalada de ultradireita no movimentos médicos do país, inclusive em seu organismo principal, o Conselho Federal de Medicina, me manda um texto bastante elucidativo de sua autoria, sobre esta situação preocupante, não só para nós médicos como para a sociedade brasileira como um todo e a Democracia em geral, que prazerosamente reproduzo abaixo.
Considerações sobre as eleições para o CFM em 2024 – Vereda Saúde (veredasaude.com)
Bolsonarismo médico: longe do fim, infelizmente
Os médicos brasileiros – nem todos, mas com certeza aquela maioria diretamente influenciada pelos dirigentes dos Conselhos Federal e Estaduais de Medicina – foram sem dúvida cúmplices das ideias bolsonaristas sobre a pandemia, aí incluídas o receituário de cloroquina e ivermectina e a rejeição às medidas de isolamento. O DF não escapou disso, lamentavelmente. Mas agora a situação parece estar mudando. Ou não? Com efeito, a semana que passou foi marcada pelas eleições dos conselhos regionais. No geral, as chapas de situação, dominadas pelo conservadorismo bolsonarista e com direito a muito uso da máquina, se saíram vencedoras em todo o Brasil. No entanto, aqui em Brasília, a chapa de oposição conseguiu a vitória, mesmo sob fortes restrições impostas pela comissão eleitoral situacionista. Seria esta uma guinada incipiente nas orientações políticas desta categoria historicamente conservadora? No meu entendimento, é muito cedo para afirmar algo assim, mesmo que estejamos diante de uma transição geracional e de marcante incremento da quantidade de médicos no país. Aqui no DF, é bom lembrar, o CRM apoiou integralmente as diretrizes do CFM quanto ao uso da cloroquina, sem qualquer evidência, mesmo tendo sido confrontado por um abaixo assinado com grande quantidade de assinaturas. E certamente por influência de tal movimento de base, surgiu a iniciativa denominada Médicos em Movimento, que passou debater e propor mudanças, agora refletidas na chapa vitoriosa. Sem dúvida, tudo indica que aqui no DF havia marcante insatisfação com a cúpula médica, eternizada no poder graças a experiência acumulada na direção dos órgãos da categoria, além do CRM as associações médicas e sindicato.
Aqui vão algumas informações sobre as características atuais da profissão médica no DF, segundo a publicação Demografia Médica no Brasil, editada pelo CRM de São Paulo (Cremesp), junto com a Associação Médica Brasileira.
1. O DF tem 17.140 médicos registrados, nem todos em atividade plena, claro, sendo 27,3% generalistas e 72,7% especialistas, numa relação invertida em relação à realidade do pais como um todo.
2. Existem aqui 6 cursos de medicina com cerca de 600 vagas anuais, o que corresponde a 1,5% do total de vagas em todo o Brasil, versus uma população que se situa em torno de 3% daquela nacional.
3. O rendimento mensal de médicos, de acordo com dados da Receita Federal é o maior do Brasil, em torno de 37 mil reais. Já o número de consultas oferecidas anualmente é reduzido em relação às outas Unidades Federativas, não chegando a 600.
4. O que mais chama a atenção é o da razão médicos por mil habitantes; quando se compara com os estados, ele é simplesmente o maior do Brasil, ou seja, 5,53, versus o do Pará, por exemplo, que é o menor: 1,18.
5. Um ranking entre capitais, que seria o mais adequado, mostra que algumas mostram cifras maiores do que 8 por mil habitantes, como são os casos de Vitória, Florianópolis, Porto Alegre, BH, Goiânia, além de outras capitais.
6. O DF tem apenas 1,5% da população do país, mas conta com 2,9% dos médicos registrados, existindo assim, em favor do DF, uma enorme desproporção entre a quantidade de médicos disponíveis e a população residente.
Em outras palavras, o DF tem uma pletora de médicos, mas isso não impede que postos de trabalho na periferia e na atenção básica não estejam preenchidos, o que dá bem uma medida de certa ideologia médica por aqui. Esta mesma ideologia que deu a maioria dos votos somados para as chapas conservadoras. Mas felizmente as eleições dos Conselhos são resolvidas em um único turno, senão teríamos a continuidade daquele mais do mesmo tradicional.
Em termos nacionais, o número de médicos mais do que dobrou no país em pouco mais de 20 anos e mesmo com uma eventual e hipotética suspensão da abertura de novos cursos de medicina, prevê-se um milhão de médicos em 2035. Sua densidade por 1.000 habitantes aumentou no país (2,60 em 2023) mas prevalecem a concentração geográfica e a força de atração dos grandes centros, nas capitais até 6,13/1000 hab, no interior 1,84. Nas cidades com menos de 50.000 habitantes, onde vive mais de 30% da população, estão presentes apenas 8% dos médicos, o que significa que a chamada “interiorização” de médicos está longe de ser realidade.
Enfim, o Brasil precisa de médicos para cuidar de toda a população, o que dependerá, em grande medida, da sustentabilidade e ampliação do SUS constitucional. Se perdurarem, o subfinanciamento público, o aumento dos gastos privados e a segmentação do sistema de saúde, irão determinar a atuação de grande parcela dos médicos. Na luta política para que isso seja revertido, os conselhos e demais entidades médicas têm papel fundamental, mas não parece ser esta a tendência dominante, conforme apontam as recentes eleições para os conselhos, nos quais a facção oligárquica e conservadora mantém quase total dominância.
Que me desculpem os colegas médicos Ana Maria Costa e Felipe Cavalcanti, ambos ligados à chapa vencedora aqui no DF. Eles acreditam que o que aconteceu aqui é o começo de uma grande virada nacional, conforme declararam em entrevista ao site outras.palavras. Eu gostaria de ser otimista assim, mas penso que isso não passa de sonho de uma noite de verão. A extinção do bolsonarismo médico (e de outras modalidades também), seja no DF e principalmente no restante do Brasil, infelizmente ainda está bem distante de se tornar realidade. Nada como estar atento à realidade e não se perder em meros pensamentos desejosos…
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Para compreender melhor a situação, resolvi consultar alguém que realmente entende do assunto em foco, ou seja, meu amigo Eduardo Guerra, que já foi presidente do CRM-DF e por ocasião da campanha eleitoral dirigiu uma esclarecedora carta circular aos médicos do DF, a qual estou autorizado a divulgar.
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Veja nos links abaixo uma síntese da pesquisa DMB 2023, o acesso ao texto completo da mesma, além de textos meus sobre a demografia médica do DF.
• https://www.fm.usp.br/fmusp/conteudo/DemografiaMedica2023.pdf
• Demografia Médica no Brasil 2023 sintese.docx
• https://saudenodf.com.br/2023/03/20/a-formacao-medica-e-o-distrito-federal/
• https://saudenodf.com.br/2023/03/08/a-renda-dos-medicos-no-df-algumas-consideracoes/
• https://saudenodf.com.br/2023/03/01/seriam-os-medicos-do-df-pouco-produtivos/
• https://saudenodf.com.br/2023/02/25/demografia-medica-no-distrito-federal/
Sobre a recente eleição para o CRM-DF:
• https://outraspalavras.net/outrasaude/o-presente-e-o-futuro-dos-conselhos-de-medicina/
• https://blogs.correiobraziliense.com.br/cbpoder/chapa-4-de-oposicao-vence-as-eleicoes-do-crm-df/

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário de Saúde em Uberlândia e sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade