Dr Flávio de Adrade Goulart*
Você conhece algum personagem na fotografia acima? Possivelmente sim, pelo menos aquele senhor de terno preto e um sorriso inconfundível no rosto redondo e no jeito bonachão: Getúlio Vargas. Já o outro homem, de terno claro, porte avantajado, também posando de maneira simpática e sorridente para a foto, é Franklin Delano Roosevelt, então presidente dos EUA (a foto é da década de 30). Historiadores profissionais certamente identificariam outros personagens em tal fotografia, mas de minha parte, admito reconhecer apenas os dois que acabo de citar. Mas afinal, o que faziam aquelas duas autoridades juntas em uma mesa festiva, o ditador daqui e o presidente de lá, e o que isso tem a ver com o SUS? Pois é, pode parecer inacreditável, mas tal encontro, apesar de ter acontecido há quase 100 anos, teve consequências para a política social, a política econômica e o próprio lugar do Brasil no mundo, nos anos atuais. Adicionando certo spoiler a esta história, diria que naquele momento de transição global, com o nazismo florescendo na Alemanha e os Estados Unidos se preparando para se transformar em potência mundial, aquele encontro possibilitou um movimento de aproximação do Brasil a uma esfera geopolítica que, com todos os seus problemas e defeitos, nos coloca hoje como beneficiários de um sistema de saúde que, mesmo aos trancos e barrancos, avanços e recuos, está em sintonia com a ideia mãe do Estado de Bem Estar Social, que sem dúvida representa um marco civilizatório, presente nos países mais desenvolvidos do mundo. Simbolicamente, pelo menos, estávamos do lado certo da história, mas é melhor não sermos muito dogmáticos quanto a isso, pois países do lado errado, como o Japão e a Alemanha, estão hoje em situação social e econômica muito melhor do que a nossa. Mas atenção: não se trata de uma história perfeitamente linear – vamos a ela.
No campo específico da saúde já havia alguma colaboração entre os EUA e o Brasil desde a década de 20, quando dominavam as doenças infecciosas e parasitárias, ditas tropicais, aqui no Brasil (e mesmo em partes dos Estados Unidos) e havia entre os dois países processos de colaboração técnica e mesmo operacional, através da Fundação Rockfeller. A diretriz filosófica disso era o chamado círculo vicioso da pobreza e da doença e a estratégia usada para rompê-lo tinha como base o saneamento básico e a educação das pessoas. Não que isso não fosse importante, mas a verdade é que havia mais coisas a considerar no cenário, por exemplo, um tratamento mais político da questão, a ser considerada a partir de determinantes econômicos e sociais mais amplos – mas isso podemos discutir mais adiante.
Quando Roosevelt veio ao Brasil (e ele o fez mais de uma vez ao longo de seus inéditos quatro mandatos, entre 1930 e 1945), já estava em curso, por parte do EUA, uma operação de verdadeira cooptação do Brasil, dentro de uma geopolítica de boa vizinhança, destinada não só a nos incorporar na esfera de influência (política e econômica) norte-americana como consolidar uma aliança estratégica (embora em uma posição subsidiária para o Brasil), aspecto que viria a ser incrementado pela ascensão do nazifascismo na Europa.
O resultado de tal aproximação tornou-se bastante visível nos anos 40, por exemplo, com a criação da Cia. Siderúrgica Nacional e da Cia. Vale do Rio Doce, já integrantes do chamado esforço de guerra, por lidarem com uma comodity fundamental para tanto: o minério de ferro e através dele, o aço. Aí entra, também, a criação dos Serviços Especiais de Saúde Pública – SESP, que introduz em cena, finalmente, o tópico central deste artigo, a Saúde Pública. Isso se deu no ano de 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, por ocasião de uma reunião de dos Ministérios das Relações Exteriores das Américas, realizada no Rio de Janeiro. Tal organismo tinha como atribuições básicas prover saúde e saneamento na Amazônia e no Vale do Rio Doce, onde se produziam borracha e minério de ferro, matérias-primas estratégicas para o esforço de guerra, com foco nos altos índices de malária, febre amarela e outras doenças que atingiam os trabalhadores em tais regiões.
Nos anos seguintes o SESP viu crescer extraordinariamente suas tarefas, que passaram também a incluir a criação de hospitais e outras unidades de saúde na Amazônia, Vale do São Francisco e Rio Doce; a erradicação da varíola; o desenvolvimento de serviços de água e esgoto, chamados SAAE e mesmo a formação de profissionais de saúde. Ainda como parte do esforço de guerra, prestou assistência direta no encaminhamento de trabalhadores, principalmente nordestinos, para os seringais da Amazônia. Em termos da formação de RH para a saúde, implantou escolas de enfermagem no Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul, Goiás e Amazonas, através de cursos de graduação e de formação de auxiliares de enfermagem.
Nem tudo, porém, foram flores e glórias em tal história. A entidade, depois denominada Fundação SESP, exerceu atividades ininterruptas entre a década de 40 e o início dos 90, sendo então despojada de suas atividades assistenciais, descentralizadas a estados e municípios, por força da Constituição de 1988.
Problemas conceituais e operacionais relativos a seu funcionamento, entretanto, não foram poucos, por exemplo: (a) Sua estrutura altamente centralizada, sediada no Rio de Janeiro e com pouca delegação de poderes às superintendências estaduais. (b) Além disso, como geralmente acontece em casos assim (vide a estrutura militar), forte hierarquização de suas cadeias de comando, gerando morosidade e letargia na transmissão de determinações ao logo delas. (c) Tal hierarquização e centralismo tinham como consequência imediata sua atuação isolada e sem maiores pontos de contato ou mesmo consulta com estruturas correspondentes nos estados e municípios, fazendo parte, aliás, de uma lógica declarada na instituição. (d) As múltiplas unidades de assistência não faziam parte de um sistema verdadeiro unificado e regionalizado, como seria desejável, mas sim fragmentado. (e) Apesar de assistência saúde se ligar fortemente a saneamento básico, a atuação simultânea do SESP nessas duas áreas acarretava fatores complicadores operacionais e estratégicos diversos, por buscar associar desafios de ordem social e cultural, na saúde, bem como de tecnologia e engenharia, no saneamento. (f) A mudança do panorama epidemiológico, com domínio cada vez maior das condições crônicas e não transmissíveis certamente também contribuiu para o panorama de dificuldades, já que a atuação do SESP foi pensada e gerida dentro de outro paradigma, ou seja, da prevalência das doenças infecciosas e parasitárias, das endemias e das condições agudas em geral.
Acima de tudo, com certeza, vieram as novas determinações constitucionais no campo da Saúde: unificação, descentralização, regionalização, participação social, apressando a decadência de tal entidade . O fato é que a atuação histórica da SESP teve um fim relativamente melancólico, com a sua fusão com outros segmentos do Ministério da Saúde, dentro de um processo que lembra uma anedota atribuída ao teatrólogo G. Bernard Shaw, sabidamente um homem feio, a respeito de um possível casamento com a bela, mas pouco inteligente, Miss Inglaterra da época, ao que ele comentou: melhor não, haveria o risco de juntarmos a minha feiura com a estultice dela… Foi algo assim o que aconteceu com a instituição nascitura, nos anos 90. Não bastasse isso, a nova Fundação Nacional de Saúde, ficou restrita basicamente à área de saneamento, mesmo assim com muitas limitações, dado que a a operação primordial em tal campo coube ao Ministério do Interior (e depois das Cidades) , além de ter se transformado em presa fácil e preferencial de disputas políticas acirradas entre políticos clientelistas, particularmente na região Nordeste.
Mas ao mesmo tempo não se pode negar o papel do SESP como verdadeiro laboratório de ensaio para algumas das conquistas do SUS, por exemplo: a descentralização operacional (mais do que de gestão); o foco na Atenção Primária à Saúde; o trabalho em equipe de relações horizontalizadas; o foco em grupos populacionais vulneráveis; o desenvolvimento da educação sanitária, mesmo em sua forma tradicional, não necessariamente emancipadora; a integração entre intervenções individuais e coletivas; os primórdios de uma hierarquização assistencial, mesmo restrita ao conjunto de suas unidades, fora de modalidade mais sistêmica.
De toda forma, não se pode negar que naquela foto dos anos 30 já havia pelo menos um pequeno sinal premonitório do SUS, embora isso tenha acontecido depois de longo e acidentado percurso.
É claro que as raízes do do SUS vão bem além disso. O nosso atual sistema de saúde, o qual merece nosso carinho e proteção, é também fruto de um movimento intelectual, político e também social (em menor escala), surgido muitos anos depois. Ele certamente bebeu de outras fontes, por exemplo, da formação dos National Health Services do Reino Unido; de outros sistemas de direito universal e responsabilidade estatal, presentes em países socialistas e socialdemocratas em geral; de programas como o dos médicos descalços chineses, que tiveram reflexos em programas brasileiros como o de Agentes Comunitários de Saúde; enfim, de uma potente produção intelectual e empírica, oriunda de diversas culturas sanitárias mundiais.
Acima de tudo, o SUS derivou também do trabalho anônimo de muitos médicos, de outros profissionais e de equipes de saúde, gente que nos interiores e nas capitais do Brasil colocou em prática, desde sempre, (velhas) ideias novas como: trabalho em equipe, foco na atenção primária, responsabilização pela saúde dos cidadãos, educação sanitária, participação e interação com as comunidades, planejamento participativo, sintonia e respeito com a cultura local etc.
E é bom lembrar: curiosamente, se o SUS deve algo aos EUA, nos dias de hoje a situação se inverteu, porque temos um sistema de saúde muito mais aperfeiçoado do que o deles, que é baseado em transações no mercado e não em direitos das pessoas usuárias. O nosso SUS, enfim, embora seja uma solução ainda com problemas, principalmente no financiamento, jamais representaria um problema sem solução.
Saiba mais:
• A criação do SESP e a saúde pública atualmente: o que aprendemos? – O que é notícia em Sergipe (infonet.com.br)
• A história da SESP – Jornal GGN
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Sobre a foto acima: Getúlio Vargas ao lado de Franklin D. Roosevelt (sentado, à direita), presidente dos Estados Unidos, durante uma de suas visitas ao Brasil na década de 1930. Fonte: http://fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo-pessoal/GV/audiovisual/getulio-vargas-com-franklin-roosevelt-e-outroshttp://fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo-pessoal/GV/audiovisual/getulio-vargas-com-franklin-roosevelt-e-outros
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Armínio Fraga: não é possível voltar ao modelo original do SUS.
Armínio Fraga, ex-Presidente do Banco Central no governo FHC e figura carimbada do mercado financeiro, quem diria(!), virou uma referência importante na discussão sobre os rumos do sistema de saúde no Brasil. Os puristas ideológicos odeiam tal coisa, mas de minha parte devo admitir que está valendo a apena ouvi-lo, mesmo sem concordar cem por cento com o que ele anda dizendo. Em entrevista recente à FSP, assinada pela jornalista especializada em questões de saúde, Claudia Collucci (ver link ao final), ele simplesmente defende que o país caminhe para um sistema de saúde que seja mais um híbrido de alguns modelos europeus, com gestão de serviços terceirizada, não mais algo derivado daquele generoso sonho constitucional de 1988. Neste aspecto penso que as ideias de Armínio Fraga devem ser consideradas e somadas a outras, de extração diversa. Acesse mais informação sobre isso: Armínio Fraga: não é possível voltar ao modelo original do SUS – A SAÚDE NO
Raízes insuspeitadas do SUS
Você conhece algum personagem na fotografia acima? Possivelmente sim, pelo menos aquele senhor de terno preto e um sorriso inconfundível no rosto redondo e no jeito bonachão: Getúlio Vargas. Já o outro homem, de terno claro, porte avantajado, também posando de maneira simpática e sorridente para a foto, é Franklin Delano Roosevelt, então presidente dos EUA (a foto é da década de 30). Historiadores profissionais certamente identificariam outros personagens em tal fotografia, mas de minha parte, admito reconhecer apenas os dois que acabo de citar. Mas afinal, o que faziam aquelas duas autoridades juntas em uma mesa festiva, o ditador daqui e o presidente de lá, e o que isso tem a ver com o SUS? Pois é, pode parecer inacreditável, mas tal encontro, apesar de ter acontecido há quase 100 anos, teve consequências para a política social, a política econômica e o próprio lugar do Brasil no mundo, nos anos atuais. Adicionando certo spoiler a esta história, diria que naquele momento de transição global, com o nazismo florescendo na Alemanha e os Estados Unidos se preparando para se transformar em potência mundial, aquele encontro possibilitou um movimento de aproximação do Brasil a uma esfera geopolítica que, com todos os seus problemas e defeitos, nos coloca hoje como beneficiários de um sistema de saúde que, mesmo aos trancos e barrancos, avanços e recuos, está em sintonia com a ideia mãe do Estado de Bem Estar Social, que sem dúvida representa um marco civilizatório, presente nos países mais desenvolvidos do mundo. Simbolicamente, pelo menos, estávamos do lado certo da história, mas é melhor não sermos muito dogmáticos quanto a isso, pois países do lado errado, como o Japão e a Alemanha, estão hoje em situação social e econômica muito melhor do que a nossa. Mas atenção: não se trata de uma história perfeitamente linear – vamos a ela.
No campo específico da saúde já havia alguma colaboração entre os EUA e o Brasil desde a década de 20, quando dominavam as doenças infecciosas e parasitárias, ditas tropicais, aqui no Brasil (e mesmo em partes dos Estados Unidos) e havia entre os dois países processos de colaboração técnica e mesmo operacional, através da Fundação Rockfeller. A diretriz filosófica disso era o chamado círculo vicioso da pobreza e da doença e a estratégia usada para rompê-lo tinha como base o saneamento básico e a educação das pessoas. Não que isso não fosse importante, mas a verdade é que havia mais coisas a considerar no cenário, por exemplo, um tratamento mais político da questão, a ser considerada a partir de determinantes econômicos e sociais mais amplos – mas isso podemos discutir mais adiante.
Quando Roosevelt veio ao Brasil (e ele o fez mais de uma vez ao longo de seus inéditos quatro mandatos, entre 1930 e 1945), já estava em curso, por parte do EUA, uma operação de verdadeira cooptação do Brasil, dentro de uma geopolítica de boa vizinhança, destinada não só a nos incorporar na esfera de influência (política e econômica) norte-americana como consolidar uma aliança estratégica (embora em uma posição subsidiária para o Brasil), aspecto que viria a ser incrementado pela ascensão do nazifascismo na Europa.
O resultado de tal aproximação tornou-se bastante visível nos anos 40, por exemplo, com a criação da Cia. Siderúrgica Nacional e da Cia. Vale do Rio Doce, já integrantes do chamado esforço de guerra, por lidarem com uma comodity fundamental para tanto: o minério de ferro e através dele, o aço. Aí entra, também, a criação dos Serviços Especiais de Saúde Pública – SESP, que introduz em cena, finalmente, o tópico central deste artigo, a Saúde Pública. Isso se deu no ano de 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, por ocasião de uma reunião de dos Ministérios das Relações Exteriores das Américas, realizada no Rio de Janeiro. Tal organismo tinha como atribuições básicas prover saúde e saneamento na Amazônia e no Vale do Rio Doce, onde se produziam borracha e minério de ferro, matérias-primas estratégicas para o esforço de guerra, com foco nos altos índices de malária, febre amarela e outras doenças que atingiam os trabalhadores em tais regiões.
Nos anos seguintes o SESP viu crescer extraordinariamente suas tarefas, que passaram também a incluir a criação de hospitais e outras unidades de saúde na Amazônia, Vale do São Francisco e Rio Doce; a erradicação da varíola; o desenvolvimento de serviços de água e esgoto, chamados SAAE e mesmo a formação de profissionais de saúde. Ainda como parte do esforço de guerra, prestou assistência direta no encaminhamento de trabalhadores, principalmente nordestinos, para os seringais da Amazônia. Em termos da formação de RH para a saúde, implantou escolas de enfermagem no Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul, Goiás e Amazonas, através de cursos de graduação e de formação de auxiliares de enfermagem.
Nem tudo, porém, foram flores e glórias em tal história. A entidade, depois denominada Fundação SESP, exerceu atividades ininterruptas entre a década de 40 e o início dos 90, sendo então despojada de suas atividades assistenciais, descentralizadas a estados e municípios, por força da Constituição de 1988.
Problemas conceituais e operacionais relativos a seu funcionamento, entretanto, não foram poucos, por exemplo: (a) Sua estrutura altamente centralizada, sediada no Rio de Janeiro e com pouca delegação de poderes às superintendências estaduais. (b) Além disso, como geralmente acontece em casos assim (vide a estrutura militar), forte hierarquização de suas cadeias de comando, gerando morosidade e letargia na transmissão de determinações ao logo delas. (c) Tal hierarquização e centralismo tinham como consequência imediata sua atuação isolada e sem maiores pontos de contato ou mesmo consulta com estruturas correspondentes nos estados e municípios, fazendo parte, aliás, de uma lógica declarada na instituição. (d) As múltiplas unidades de assistência não faziam parte de um sistema verdadeiro unificado e regionalizado, como seria desejável, mas sim fragmentado. (e) Apesar de assistência saúde se ligar fortemente a saneamento básico, a atuação simultânea do SESP nessas duas áreas acarretava fatores complicadores operacionais e estratégicos diversos, por buscar associar desafios de ordem social e cultural, na saúde, bem como de tecnologia e engenharia, no saneamento. (f) A mudança do panorama epidemiológico, com domínio cada vez maior das condições crônicas e não transmissíveis certamente também contribuiu para o panorama de dificuldades, já que a atuação do SESP foi pensada e gerida dentro de outro paradigma, ou seja, da prevalência das doenças infecciosas e parasitárias, das endemias e das condições agudas em geral.
Acima de tudo, com certeza, vieram as novas determinações constitucionais no campo da Saúde: unificação, descentralização, regionalização, participação social, apressando a decadência de tal entidade . O fato é que a atuação histórica da SESP teve um fim relativamente melancólico, com a sua fusão com outros segmentos do Ministério da Saúde, dentro de um processo que lembra uma anedota atribuída ao teatrólogo G. Bernard Shaw, sabidamente um homem feio, a respeito de um possível casamento com a bela, mas pouco inteligente, Miss Inglaterra da época, ao que ele comentou: melhor não, haveria o risco de juntarmos a minha feiura com a estultice dela… Foi algo assim o que aconteceu com a instituição nascitura, nos anos 90. Não bastasse isso, a nova Fundação Nacional de Saúde, ficou restrita basicamente à área de saneamento, mesmo assim com muitas limitações, dado que a a operação primordial em tal campo coube ao Ministério do Interior (e depois das Cidades) , além de ter se transformado em presa fácil e preferencial de disputas políticas acirradas entre políticos clientelistas, particularmente na região Nordeste.
Mas ao mesmo tempo não se pode negar o papel do SESP como verdadeiro laboratório de ensaio para algumas das conquistas do SUS, por exemplo: a descentralização operacional (mais do que de gestão); o foco na Atenção Primária à Saúde; o trabalho em equipe de relações horizontalizadas; o foco em grupos populacionais vulneráveis; o desenvolvimento da educação sanitária, mesmo em sua forma tradicional, não necessariamente emancipadora; a integração entre intervenções individuais e coletivas; os primórdios de uma hierarquização assistencial, mesmo restrita ao conjunto de suas unidades, fora de modalidade mais sistêmica.
De toda forma, não se pode negar que naquela foto dos anos 30 já havia pelo menos um pequeno sinal premonitório do SUS, embora isso tenha acontecido depois de longo e acidentado percurso.
É claro que as raízes do do SUS vão bem além disso. O nosso atual sistema de saúde, o qual merece nosso carinho e proteção, é também fruto de um movimento intelectual, político e também social (em menor escala), surgido muitos anos depois. Ele certamente bebeu de outras fontes, por exemplo, da formação dos National Health Services do Reino Unido; de outros sistemas de direito universal e responsabilidade estatal, presentes em países socialistas e socialdemocratas em geral; de programas como o dos médicos descalços chineses, que tiveram reflexos em programas brasileiros como o de Agentes Comunitários de Saúde; enfim, de uma potente produção intelectual e empírica, oriunda de diversas culturas sanitárias mundiais.
Acima de tudo, o SUS derivou também do trabalho anônimo de muitos médicos, de outros profissionais e de equipes de saúde, gente que nos interiores e nas capitais do Brasil colocou em prática, desde sempre, (velhas) ideias novas como: trabalho em equipe, foco na atenção primária, responsabilização pela saúde dos cidadãos, educação sanitária, participação e interação com as comunidades, planejamento participativo, sintonia e respeito com a cultura local etc.
E é bom lembrar: curiosamente, se o SUS deve algo aos EUA, nos dias de hoje a situação se inverteu, porque temos um sistema de saúde muito mais aperfeiçoado do que o deles, que é baseado em transações no mercado e não em direitos das pessoas usuárias. O nosso SUS, enfim, embora seja uma solução ainda com problemas, principalmente no financiamento, jamais representaria um problema sem solução.
Saiba mais:
• A criação do SESP e a saúde pública atualmente: o que aprendemos? – O que é notícia em Sergipe (infonet.com.br)
• A história da SESP – Jornal GGN
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Sobre a foto acima: Getúlio Vargas ao lado de Franklin D. Roosevelt (sentado, à direita), presidente dos Estados Unidos, durante uma de suas visitas ao Brasil na década de 1930. Fonte: http://fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo-pessoal/GV/audiovisual/getulio-vargas-com-franklin-roosevelt-e-outroshttp://fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo-pessoal/GV/audiovisual/getulio-vargas-com-franklin-roosevelt-e-outros
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Armínio Fraga: não é possível voltar ao modelo original do SUS
Armínio Fraga, ex-Presidente do Banco Central no governo FHC e figura carimbada do mercado financeiro, quem diria(!), virou uma referência importante na discussão sobre os rumos do sistema de saúde no Brasil. Os puristas ideológicos odeiam tal coisa, mas de minha parte devo admitir que está valendo a apena ouvi-lo, mesmo sem concordar cem por cento com o que ele ainda dizendo. Em entrevista recente à FSP, assinada pela jornalista especializada em questões de saúde, Claudia Collucci (ver link ao final), ele simplesmente defende que o país caminhe para um sistema de saúde que seja mais um híbrido de alguns modelos europeus, com gestão de serviços terceirizada, não mais algo derivado daquele generoso sonho constitucional de 1988. Neste aspecto penso que as ideias de Armínio Fraga devem ser consideradas e somadas a outras, de extração diversa. Acesse mais informação sobre isso: Armínio Fraga: não é possível voltar ao modelo original do SUS – A SAÚDE NO DISTRITO FEDERAL TEM JEITO! (saudenodf.com.br)
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário de Saúde em Uberlândia e sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade