Dr. Flavio de Andrade Goulart –
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário de Saúde em Uberlândia e sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade

Se você, caro leitor, achou que há algum exagero na relação sugerida pelo título acima, não vou lhe negar a razão, mas posso explicá-la melhor. Quando falo “trumpismo” estou indicando a onda de direita que se levanta em todo o mundo, vitaminada agora pelo agente laranja que ganhou as eleições nos EUA. Já a expressão “saúde no Brasil” pode ser trocada por “políticas sociais”, sejam de interesse dos países em desenvolvimento, como o nosso, ou também, por que não, dos países centrais. Esclarecido? Mas não há dúvida que repercussões imediatas de tal fenômeno já há tempos se revelam, como já vimos no período de testes realizado no país de origem do fenômeno, entre 2016 e 2020. E também aqui, sob a égide de seu tosco imitador tropical e do vampiro que o antecedeu. Assim, já havia indicações de que os mais pobres não seriam contemplados; que imigrantes seriam desprezados e banidos; que mulheres, índios, negros e minorias em geral estariam fora do escopo das políticas; que direitos adquiridos em saúde e outras áreas seriam atirados no lixo. E principalmente que os novos poderosos buscariam atuar sem freios, dentro de uma lógica de que “nós errados estamos mais certos do ‘eles’ certos” – e por aí vai. Entre o espanto e a revolta, contudo, é preciso tentar entender tais acontecimentos, mesmo que não seja possível extrair deles alguma solução, mas pelo menos para não naufragar no cinismo ou na descrença na política ou na humanidade. O fato é que muita coisa mudou no mundo, fazendo com que alguns de nossos velhos dogmas precisem ser revistos ou reciclados, à custa, naturalmente, de sangue, suor e lágrimas. Explico melhor…

Para começar (ou acabar…) vamos combinar: a verdade é que o mundo já não é mais o mesmo, nem a política, nem as aspirações das pessoas. Como diria Bob Dylan: times are changing… As utopias de até outro dia, por exemplo: salários pagos mensalmente, emprego fixo, FGTS, horário de almoço, garantias da CLT, férias remuneradas, horário de almoço, aposentadoria, licença gestação etc.: onde foram parar? É tempo de murici, ou melhor, de uberização e empreendedorismo, cada um que cuide de si… É por aí que rolam, ladeira abaixo, os antigos sistemas públicos e universais de saúde e de bem estar social, diante de certas tendências de reformas que grassam pelo mundo a fora, sob a nova realidade da financeirização, na qual se radicalizam movimentos de mercado, afastando a participação do Estado (que a isso acolhe de muito bom-gosto). E tome privatizações, terceirizações e negação de direitos. Tudo isso, como diz meu amigo Jairnilson Paim, dentro de um quadro de forte promiscuidade público-privada e desfinanciamento público, fazendo verdadeiro par siamês com a financeirização. E tem mais a precarização dos empregos e dos trabalhadores (a tal da “uberização”), dentro de um novo modelo de trabalho, flexível e alheio a vínculos empregatícios formais, no qual a força de trabalho perde relevância e se submete sem peias aos interesses do capital financeirizado.

É por tais atalhos que transitam certas figuras um tanto patéticas (para dizer pouco…) que emergem dessa realidade quase distópica: o pobre de direita, o empregado que se acha patrão, o jovem reacionário e conservador, o imigrante que vota na extrema direita xenófoba, o crente que sacrifica seu orçamento doméstico para pagar o dízimo.

***

Para não dizer que não falei do SUS… Seu surgimento a aguerrida militância do mesmo atribui a um grande movimento social”. Mas discordo…

Acredito que a formação do SUS é muito menos do que a ação coordenada e intencional de quaisquer “movimentos sociais” mais amplos, a não ser que chamemos de “movimento social” a uma articulação de intelectuais e membros da burocracia pública, que começou a se adensar entre os anos sessenta e setenta, com localização geográfica preferencial nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Realmente penso que é difícil ampliar o escopo do possível alcance e influência de tais atores, ao ponto de credenciá-los, por si só, como um autêntico “movimento social”. Mesmo se o fossem, é preciso deixar claro que outros segmentos sociais, igualmente ou mais importantes do que este ilustre punhado de acadêmicos e burocratas, não estavam de fato engajados, pelo menos formalmente, na luta pela reforma do sistema de saúde, nos anos pré-Constituição.

É claro que naqueles anos havia revoltas importantes em relação ao mau funcionamento dos serviços de saúde, ainda mais em uma época em que perduravam irremediável divisão e apartheid entre os que portavam a “carteirinha” do Inamps e os que eram obrigados a disputar atendimento no sistema público direto ou filantrópico. O que conhecemos hoje como “plano de saúde” ainda era total novidade na ocasião. Mesmo assim, no meu entendimento, não havia de fato uma pauta clara para a questão da saúde, pelo menos fora do circuito intelectual e burocrático referido acima.

E assim o SUS veio ao mundo, sonhado generosamente por um punhado de iluminados… O problema é que este SUS sonhado desaguou no SUS real, que apesar de suas não escassas qualidades, não é o bastante para todos, em termos de quantidade e principalmente da qualidade do que é caapz de oferecer.

Que tal, então, analisar outro projeto: o do SUS possível, face à conjuntura atual e de futuro não muito imediato, em honra daqueles cidadãos que já não suportam mais a amarga realidade que lhes é impingida cotidianamente nos hospitais, nos pronto-socorros e nas unidades públicas de maneira geral, quase sempre longe daquelas supostas ilhas de excelência que nunca são alcançadas?

Mas antes vamos combinar: que isso ocorra sem que se perca a compostura, o que nos remete a determinados princípios. O primeiro deles é dar um solene adeus às ilusões! E entre estas, enumero: (1) a crença de que seria possível dar tudo para todos; (2) a de que todo poder deve ser atribuído aos municípios em matéria de saúde; (3) a do enganoso controle social, que se realiza mais sobre a sociedade do que a partir dela; (4) a certeza de que existiria profunda maldade na ação do setor privado e que sua incompatibilidade com o sistema público é total e inerente a ele; (5) a defesa de que dinheiro é feito de látex e que, assim, os orçamentos públicos são sempre uma questão de decisão política que escapa à lógica aritmética e, finalmente, (6) que é sempre necessário cumprir a lei, embora isso não seja sempre o bastante, sendo mais importante muitas vezes anulá-la e recriá-la, longe de se apegar a tecnicalidades e bijuterias jurídicas.

Vamos agora ao que realmente importa: que o foco real de tal SUS possível e desejável seja realmente colocado sobre os mais pobres, não necessariamente apenas sobre os miseráveis, como acontece no Programa Bolsa Família. Na saúde, com efeito, o espectro tem que ser mais amplo.

Mas tem que ousar… E se não encararmos de fato alguma ousadia corremos o risco de continuar falando no deserto, para uma multidão mal servida que acorre fácil e ingenuamente a promessas mirabolantes uber-financeirizadas ou vai continuar sofrendo e até morrendo nas filas e nos corredores de hospitais, ou esperando até dois ou três anos para uma simples cirurgia de varizes ou hérnia.

A moral dessa história é a seguinte: um sistema de saúde como o SUS talvez fosse mais difícil de destruir se estivesse “ancorado” com mais robustez no coração e na mente das pessoas. Isso não impediria os atentados que a financeirização e a erosão de direitos contemporânea cometem a cada dia, mas certamente levaria a maior resistência da sociedade a tal destruição, coisa que infelizmente não se vê por aqui.

Enquanto isso, os trumponaros se locupletam em cima de suas certezas mentirosas…

Boas festas…

***

Atenção: AbraSUS Episódio #12 – Retrospectiva e Agendas de Futuro para o Controle Social do SUS

Neste novo episódio do AbraSUS 2024, o podcast faz uma retrospectiva com avanços e principais construções do controle social do SUS ao longo deste ano.

O programa recebe Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde e os conselheiros nacionais de saúde Neilton Araújo e Fernanda Magano, para um diálogo sobre os desafios para a participação democrática no SUS nos próximos períodos.

📻 O episódio é dividido em dois blocos, este focado na retrospectiva e o próximo, a ser lançado em dezembro, com foco nas agendas de futuro.

Acompanhe pelo YouTube ou pelo Spotfy do CNS
CNS

***
O que é o SUS?

Preciso falar aqui de um livro com igual título, lançado pela Fiocruz em 2009 de autoria do de meu amigo Jairnilson Paim, professor do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, que esclarece ao público não especializado sobre o que é o nosso sistema de saúde. É uma leitura fundamental para se conhecer de fato o SUS, sua história, seus problemas e desafios. Os 15 anos que o livro completa agora não invalidam sua importância, por revelar questões estruturais que continuam a desafiar a proposta de construção daquele sistema de saúde sonhado na Reforma Sanitária Brasileira. Leia mais: O que é o SUS? – 22/05/2023 – Saúde em Público – Folha

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TagsSaúde no Brasil, SUS, Trumpismo
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