Dr. Flávio de Andrade Goulart *-
Eu o conheci nos anos 80, quando vim a Brasília negociar recursos para a saúde em Uberlândia, na condição de secretário de tal área na cidade. Ele me recebeu em um prédio do Ministério da Saúde na Asa Norte, já de início me oferecendo a sensação de que éramos velhos conhecidos, embora fosse a primeira vez que nos encontrávamos. Aquilo era apenas seu jeito de ser e interagir com as pessoas. Pensei que talvez o que nos aproximava, na ocasião, eram nossas vivências no Triângulo Mineiro, bom uberabense que ele era.
Dr Décio Campos Júmior
Não me lembro mais se aquela minha missão no MS foi de fato bem sucedida, sendo coisa banal o fracasso de tratativas assim na burocracia federal de então e de sempre, dada a posição marginal que os municípios eram colocados. Mas, de toda forma, a franca receptividade daquele camarada me marcou.
Eu o revi anos depois, no mesmo Ministério da Saúde, ele agora como importante Secretário Executivo e eu como coordenador geral de alguma coisa. De novo um tratamento cortês, embora um tanto prejudicado pela assoberbamento que tal função lhe trazia. Mas, tudo bem, continuei vendo nele uma pessoa de valor e, principalmente, um gestor público honesto, comprometido, dedicado à causa do SUS, ainda um ser nascente na ocasião.
Deste contato posso dizer que percebi estar ali um bom parteiro, ou seria um neonatologista(?), dedicado ao nosso então recém-nascido sistema de saúde. Em relação ao SUS, ele foi também, mais do que um defensor, um profundo estudioso e um crítico fundamentado – como convém, aliás, aos que realmente se mostram dispostos a contribuir e aperfeiçoar com a generosa ideia mãe que deu origem ao nosso sistema de saúde.
Tivemos contatos mais frequentes na Universidade de Brasília, nos corredores e salas de reuniões do Hospital de Clínicas, onde pude compartilhar com ele debates marcantes, tendo como foco não apenas a autonomia universitária, que alguns – não ele ou eu, em absoluto – desejariam que fosse uma soberania. Quanto a isso, ficamos do lado perdedor, por vezes. Mas como disse Darcy Ribeiro, compartilhamos certamente o sentimento de que que melhor ainda do que vencer era estar do lado certo da história.
Por este tempo, via nele o colega de profissão, o pediatra, o militante político, enfim o cidadão, destemido na defesa de suas posições, sem medo de esticar a corda em relação a seus pontos de vista. Com a vantagem que mesmo em ambiente muitas vezes adverso ideologicamente era dotado de grande sabedoria em expor seus pontos de vista sem provocar rupturas e desavenças maiores.
Só isso já seria motivo suficiente paras respeitá-lo decididamente, assim como muitos outros que o acompanharam na vida profissional o fizeram, com honrosa aceitação.
Entre muitas lições que dele recebi uma me foi especialmente marcante. Certo dia eu resolvi provocá-lo, indagando o motivo de ele comparecer engravatado para o atendimento no ambulatório de Pediatria no HC. Se isso não provocaria algum constrangimento naquela clientela formada por gente pobre e humilde também na indumentária. Ele me respondeu de pronto:
– Essas mulheres quando trazem seus filhos aqui vestem neles a melhor roupa que possuem e elas também capricham no vestuário. Eu apenas tenho que corresponder a isso.
Simples e exato assim – eu pensei.
Depois da aposentadoria, minha e dele na mesma ocasião, passei a acompanhá-lo mais remotamente, embora tenha comparecido ao lançamento de alguns livros seus e de estar atento a suas publicações na imprensa do DF.
Tive oportunidade de revê-lo em 2019, quando de sua passagem pela Universidade do Minho, em Braga, Portugal. Ali estava aquele cara gentil, comprometido até a medula com seus novos compromissos de pesquisador e orientador de pediatras. A idade não lhe pesava em nada, com mais de 70 anos mantinha o ardor juvenil de sempre. Tomamos um café com pastéis de nata na Praça da República e recordamos várias etapas de nossa vida profissional, em um misto de ânimo, saudade, profundidade e alegria.
Depois veio o fim, tão lento e doloroso, de um modo que nem ele e nem ninguém poderia merecer. É quase forçoso dizer que ele, neste último dezembro descansou, mas seria melhor evitar tal palavra: ele não pediu isso, não mereceu e, principalmente, ainda tinha muita energia e gás para prosseguir sua missão por muitos anos com certeza, sem precisar de qualquer descanso, ainda mais forçado.
Nas visitas que fiz a ele, já acamado, pude lhe notar que ainda lhe brilhava no olhar uma luz especial, do agente de mudanças e de produtor de ideias que ele sempre foi, embora quase escondida na tristeza que lhe impunha sua triste condição de pessoa reduzida à imobilidade
Como disse Brecht, há os homens bons, há os excepcionais e também os imprescindíveis. Dioclécio pertence, sem dúvida, a esta última categoria. Sinto-me muitíssimo honrado de ter privado de sua amizade.
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário de Saúde em Uberlândia e sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade