Texto de Flavio Goulart & Henriqueta Camarotti

Flávio Goulart

O estudo da espiritualidade e suas fronteiras com as demais áreas do conhecimento é um terreno de limites imprecisos e o método científico para tanto pode ser utilizado, com a devida cautela, por se tratar de área em que aspectos simbólicos e abstratos são preponderantes. Entretanto nas últimas décadas tem havido um particular interesse dos pesquisadores nacionais e internacionais, buscando entender melhor as intersecções dos campos do conhecimento que possam, de alguma forma, estar relacionados. De toda forma, do ponto de vista acadêmico, embora haja interesse em entender o fenômeno da espiritualidade nos vários campos da vida humana, deve-se reconhecer que ainda há muito a se caminhar. Exploraremos aqui algumas pesquisas, dentro do tema das relações entre neurociência, saúde e espiritualidade, sem perder de vista a necessidade de ampliarmos o conhecimento e reflexão crítica. A busca do esclarecimento da relação entre as funções cerebrais e a espiritualidade depende tanto do empenho clínico e do estudo de novas pesquisas que possam servir como referências para a caminhada dos interessados no assunto. As correlações entre as funções das áreas cerebrais e a espiritualidade são alguns exemplos de uma nova fronteira multidisciplinar que se descortina, associando as áreas da neurociência, da biologia evolutiva e do estudo psicológico, sociológico e antropológico do homem. Complementam-se, assim, nesse âmbito, as potencialidades de autocura, promoção da saúde mental, regulação das emoções e impulsos e a evolução do ser. As pesquisas e propostas nas áreas das neurociências são numerosas, o que torna quaisquer reflexões, neste âmbito, incompletas. A grande diversidade de posicionamentos logicamente nos dá uma margem grande de reflexão e amplia a capacidade de cada estudioso assumir suas próprias posições. O caminho é longo, mas é importante começar a dar os primeiros passos.
A espiritualidade, a religiosidade e a compreensão da evolução humana, ou seja, a inclusão da dimensão espiritual no contexto da vida e nas situações de cuidados com os pacientes são fatores que importam, e muito, nos processos de cura. Para os médicos e enfermeiros, espacialmente, a qualidade de atenção está associada com o grau de proximidade pessoal com os pacientes e o exercício de e incremento de uma “intencionalidade positiva” com estes, ou seja, um maior empenho e interesse para com as pessoas atendidas. Fica claro, então, que serviços de saúde devem contar com profissionais abertos e sensíveis à dimensão espiritual das pessoas atendidas.
Do ponto de vista dos pacientes, deve ser lembrado que para alguns o sofrimento os faz desistir de lutar, mas outros, ao contrário, se fortalecem através da dor – os chamados resilientes. Uma atitude assim talvez não possa ser inoculada em alguém, mas, com certeza, pode ser potencializada por uma atenção cuidadosa e diferenciada por parte das equipes de saúde. Estudos mostram, aliás, que a maioria dos pacientes com condições graves ou terminais buscam sentimentos do amor e de pertencimento que possam ser oferecidos pelas equipes de saúde. Assim, lembra Henriqueta, a amorosidade por parte do médico e da equipe, é a chave principal para que a situação do paciente seja potencializada em favor da cura.
Estudos diversos constatam também que a busca de recursos religiosos proporciona melhores condições psicológicas, maior capacidade de estabelecer estratégias de superação e também na redução da autovitimização, esta última uma característica de personalidade que melhor define aqueles que conseguem superar e desenvolver o processo resiliente e ainda funcionar como promotores de ajuda aos que sofrem. Não é demais lembrar que o enfrentamento das enfermidades, pode estar relacionada à fé que se tem na vida e também na crença em si próprio.
Aspecto importante é que quanto mais esclarecido for o paciente, mais ele espera acolhimento e respeito às suas crenças e convicções. Em concordância com isso estudos revelam que na maioria das situações, particularmente em doenças crônicas e degenerativas, pessoas ligadas em aspectos espirituais e religiosos apresentam melhores respostas na superação de doenças, e apresentam índices de melhor qualidade de vida. No campo específico da saúde mental, a prática espiritual e religiosa mostrou associação positiva com redução do abuso de substâncias químicas, suicídio, ansiedade, depressão e à melhora da qualidade de vida. É de se destacar também a possível correlação entre fé e consciência autocurativa.
Estudos realizados em várias partes do mundo e em diferentes culturas demonstram também que existe por parte de pacientes crônicos a expectativa de que os médicos mantenham com eles um diálogo franco em temas existenciais e espirituais e, além disso, sentimentos de compaixão. Não há dúvida, porém, que profissionais que lidam diretamente com pessoas doentes costumam sentir-se despreparados para tanto, de forma que subsiste algum afastamento entre o cuidador e a pessoa cuidada, que pode se sentir solitária na busca de aliar sua fé à superação da doença vivenciada, o que sugere a necessidade de que todo profissional de saúde deveria entender o exercício da profissão como o atendimento a um chamado ou como uma missão, E, como decorrência, a necessidade de que profissionais de saúde devem estar bem consigo mesmos para facilitar a caminhada curativa de seus pacientes.
Mas há uma pergunta que não quer se calar: a educação dos profissionais de saúde seria adequada na área da espiritualidade? Sem dúvida, isso está expresso em aspirações individuais dos estudantes, que buscam muitas vezes um sentido último para a vida através da imersão religiosa e na crença em Deus, além de outros fatores como família, naturalismo, humanismo, manifestações artísticas. Não seria por acaso que que universidades pelo mundo a fora estão incorporando disciplinas voltadas para o tema da Espiritualidade, na formação de médicos e também de enfermeiros. Procura-se, assim, não só promover o reconhecimento da dimensão espiritual do paciente, bem como a promoção de atendimentos mais humanizados. O fato é que os médicos e outros profissionais concluem seu curso valorizando basicamente os procedimentos tecnológicos, cirúrgicos e farmacológicos, deixando de lado a valorização das necessidades humanas trazidas pelo paciente, que, diante do adoecimento, encontram-se ainda mais fragilizadas. Isso se correlaciona à racionalização e medo de não serem vistos como tecnicamente competentes, em um contexto de insegurança foco exagerado em recursos tecnológicos. Associa-se a isso a imposição dos valores materialistas e imediatistas repassados pelas escolas médicas, superdimensionando o biológico em detrimento dos aspectos emocionais, culturais, existenciais e espirituais.
Apesar da falta de unanimidade entre os autores, o que é perfeitamente natural na ciência, a religiosidade e a espiritualidade dos pacientes têm sido relacionadas positivamente com a redução da morbidade e mortalidade, com a melhora da saúde física, mental, com o estilo de vida mais saudável, menor procura aos serviços de saúde e a melhora no enfrentamento das dificuldades, além da promoção do bem-estar, da redução do estresse e da prevenção de doenças. Geralmente, os profissionais de saúde são treinados para não demonstrar emoção diante do sofrimento. Essa postura pode ser vista por dois ângulos diferentes e opostos. De um lado, o terapeuta se protege do trauma vicariante, ou seja, busca não absorver o sofrimento do paciente. Do outro, pode provocar uma espécie de impermeabilidade afetiva, podendo beirar à insensibilidade. Importa, portanto, saber sentir a dor do outro, sensibilizar-se com ela, como um ato de coragem humana. Ressalta-se assim a importância de cuidar de quem cuida.
Enfim, a integração da espiritualidade e da religiosidade nas práticas de saúde é componente essencial de uma abordagem respeitosa, centrada na pessoa e interdisciplinar, que não impõe crenças religiosas nem visões de mundo seculares.
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A preocupação e a atuação das equipes de saúde com foco na espiritualidade e em outros aspectos da vida simbólica dos pacientes tem o potencial de representar, nos serviços de saúde, o panorama de verdadeira revolução.
Aproveitemos, então, o ensejo da discussão acima, para citar alguns outros aspectos da atenção à saúde, geralmente descuidados nos serviços de saúde habituais, que se somariam a uma abordagem como a presente e dariam ao atendimento um caráter profundamente humano, além de incremento apreciável na eficiência das ações. Assim, em termos sintéticos, podem ser citados (sem nenhuma expectativa de esgotar o assunto, que é por demais amplo):
Diversidade de cenários: a atenção à saúde não deveria ser oferecida apenas nos centros de saúde, hospitais e outras unidades formais do sistema de saúde. Há muitos outros ambientes nos quais ela seria valiosa, aumentando o acesso e o conforto dos pacientes, além do ganho em qualidade geral. Entre tais ambientes podem ser citados: os domicílios dos pacientes (por exemplo, na própria substituição da internação hospitalar (home-care); nas escolas; nas fábricas e outros locais de trabalho; nas prisões, quartéis e outras instituições. Isso dentro das condições e parâmetros já muito bem definidos na vasta literatura sobre a Atenção Primária à Saúde.
Diversidade de praticantes: Nas últimas décadas o setor saúde deixou de ser domínio quase exclusivo de médicos e enfermeiros para abrir suas portas a dezenas de outras profissões. Esta tendência não tem sido revertida, ao contrário, amplia-se cada vez mais. Podem ser citadas como exemplos as diversas práticas de cuidados integrativos e complementares já previstos nas normas do SUS, mas também uma vasta gama de profissões que incluem treinadores de educação física, nutricionistas, especialistas do direito, assistentes sociais, laborterapeutas, mediadores, concierges, padres, pastores e muitos outros, sem prescindir da necessária comprovação de cientificidade de cada tipo de cuidado.
Incorporação de familiares nas estratégias de cuidados: por exemplo, para atenção a idosos, bebês, gestantes, pacientes acamados, deficientes físicos e portadores de necessidades especiais diversas, como apoio e eventualmente na responsabilidade direta do cuidado, mediante supervisão das equipes formais de saúde.
O Concierge ou Navegador Clínico: profissional que disponibiliza atendimento personalizado às pessoas, visando garantir a continuidade do cuidado, conforme as necessidades de cada pessoa e ajudar para que essas pessoas se sintam acolhidas e protegidas, especialmente nas demandas administrativas, necessárias para garantia da qualidade do cuidado, tirando dúvidas, efetuando agendamentos, monitorando a realização de exames e de outros encaminhamentos, agilizando solicitações e se antecipando às necessidades das pessoas, proporcionando máximo conforto e garantia do cuidado certo, no tempo certo e no lugar certo.
Visitas domiciliares: como se sabe tal item já está incorporado na Estratégia de Saúde da Família. Todavia percebo que seu cumprimento é muito precário em toda parte, pois há habitual escassez de Agentes Comunitários de Saúde, além do desvio destes para outras funções dentro dos serviços, além da valorização reduzida desta atividade primordial que é a VD. Aliás, deveria haver tal compromisso (e obrigatoriedade) não só por parte dos ACS (seus agentes principais), mas também dos demais membros das equipes de SF, inclusive médicos – por que não?
Qualificação extra técnica das equipes: é preciso qualificar as pessoas para operarem equipamentos, colher entrevistas e anamneses, medir pressão, aplicar vacinas, esterilizar objetos, organizar a demanda de pacientes etc. – cada vez mais. Mas ao mesmo tempo é necessário introduzir novas visões e despertar reflexões sobre a vasta simbologia que envolve o campo da saúde. Em reuniões esporádicas, mensais ou bimensais, por exemplo, seria interessante que se convidasse, não só para falar, mas também ouvir as equipes, gente “diferente” como sociólogos, filósofos, agentes religiosos, pedagogos, pessoas que superaram obstáculos em sua saúde, além de outros.
Cuidados paliativos: para superarum grande vazionos sistemas de saúde,aquele que aparece quando pessoas “desenganadas” recebem alta hospitalar “para morrer em casa” – ou casos semelhantes – é preciso que os serviços de atenção primária se qualifiquem para tal missão, o que deveria incluir as tecnologias de home-care já sobejamente conhecidas, associadas à atenção humanística, nos termos já desenvolvidos acima, no presente texto.
“Desospitalizar” o ambiente: hospitais não podem ser mais aqueles lugares cinzentos e impessoais, da mesma maneira que as unidades menores do sistema de saúde. Hoje há uma tendência universal em realizar intervenções arquitetônicas e paisagísticas neste sentido. Enquanto isso não é incorporado de forma taxativa à cultura da saúde em nosso meio, cabe às equipes imaginar e executar pequenas intervenções neste sentido, por exemplo, nas atitudes receptivas por parte de todos; salas de espera amigáveis; incorporação de detalhes decorativos; retirada de cartazes taxativos, agressivos ou de negação; higiene e limpeza, acesso facilitado a água e sanitários, eventos festivos e comemorativos etc.
São pequenas coisas realmente, mas pensando bem, não existe algum rio que já nasça grande…