José C. Martelli*
(crônica – Espírito Santo do Pinhal-SP, a “Rainha das Serras”, em 1939)
Estava eu, no intervalo entre um exercício e outro, sentado num dos aparelhos da Academia ao Ar Livre, instalada na Praça Vicente de Feitas Guimarães, conhecida desde priscas eras, como Largo da Santa Cruz, quando me afloraram à mente, acompanhados de discretas lágrimas, fatos de minha infância querida que os anos não trazem mais, como escrevera Casimiro de Abreu em seu belíssimo poema, MEUS OITO ANOS, o qual reproduzirei ao final desta crônica, mas cuja primeira estrofe reproduzo já, como motivadora destes escritos.
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Pois é. Eu não tinha ainda oito anos. Sete, se tanto. Minha irmã querida, cinco, também, se tanto. Ambos não tínhamos nem começado o Grupo Escolar.
Aos sábados, às vezes aos domingos, às tardes/noites em que o Pinhal Jazz, orquestra da qual meu pai fora fundador e maestro, não excursionava pela região, ele nos levava, juntamente com minha mãe, a pé, em um passeio que atravessava nossa pequena cidade, desde a baixada da Rua Barão da Motta Paes, onde eu nascera e morávamos, lá pelas bandas do Ribeirão dos Porcos, até o mais alto ponto da cidade, exatamente onde me encontro neste momento de devaneios, o Largo da Santa Cruz.
Era um passeio e tanto. Que se multiplicava na distância pelas idas e vindas minhas e de minha irmã Teresinha. Correndo e voltando à companhia de nossos pais. Quanta energia tínhamos. Era preciso gastá-las. E o fazíamos com inominável prazer, trazendo e contando aos nossos pais cada detalhe do passeio. E eles, pacientemente nos ouviam, porque com o vocabulário restrito que ainda tínhamos, era difícil transmitir o que queríamos. Mas os gestos falavam mais do que palavras. E eles, nossos pais, nos entendiam.
Perigos eram poucos. Carros eram poucos. Alguns Fords bigodes. Alguns Chevrolets Cabeça de Cavalo. No mais carroças e charretes , assim mesmo muito poucas. As ruas eram todas nossas. Que delícia. Subíamos a Rua XV de Novembro até o Largo da Matriz, nossa praça principal. Uma parada pra corrermos e entrarmos no Coreto no centro da praça, fingindo-nos de músicos. Depois Rua Direita. Para quem não sabe a Rua Direita sempre foi José Bonifácio. Mas, para nós era e sempre será rua Direita que aliás nada tem de direita porque ela se inclina, não perpendicularmente, da Praça em direção aos altos da cidade. Lá em cima o Ginásio. E seu internato a abrigar alunos de Andradas e cidades vizinhas. Depois o Largo da Aparecida e de lá, finalmente, o Largo Santa Cruz.
(vou fazer um parênteses)
Estava escrevendo esta crônica quando apareceu, aqui, no canto de meu computador: morre Nicete Bruno, outra vítima do Covid -19. À propósito a primeira peça de teatro que assisti em São Paulo, quando para lá fora para estudar, em 1947, era encenada e protagonizada por ela – Os Ossos do Barão – uma comédia da qual nunca vou me esquecer , e que me fez, como sou até hoje, um fã incondicional do teatro. Descanse em paz Nicete – e retomemos à crônica.
Não tinha nada no Largo da Santa Cruz a não ser o que nos parecia, pequenos que éramos, uma vastidão de espaço onde podíamos correr à vontade, gastando a energia que queria ter hoje mas que não tenho, a não ser na lembrança desses anos dourados.
Mas, ao chegar quase ao epílogo desta crônica, fiquei pensando. Qual a finalidade deste escrito? O que ele vai trazer para os que o lerem de satisfação e prazer?
Por acaso alguém que está aí do outro lado, pacientemente lendo esta crônica sabe o que era um Ford bigode ou um Chevrolet cabeça de cavalo? Lembra do coreto da praça? Conheceu a Rua Direita de “imemoráveis footings” . Claro que não. Por que? Porque todos aqueles com quem convivi desde aquela época, já se foram, deixando uma imensa saudade dentre seus amigos e parentes.
Então fico aqui sentado, onde comecei meus devaneios, pensando que não há mais ninguém que vai se lembrar dessas coisas ou fatos. Vai restar apenas minha memória. A saudade dorida de meus pais e de um tempo que não volta mais. Não volta mais, mas foram bem e intensamente vividos . E isso é o que importa. E mais do que importar são as lições que deixou de que a vida deve ser sempre vivida. Completa e intensamente, porque ela é feita de momentos. Eu diria, até de instantes. Prazerosos e gratificantes. Isso é o que vale. Então vamos aos exercícios. Chega de devaneios. Já recordei demais, por hoje.
Agora, conforme prometido:
*Advogado e professor