José C. Martelli*
Aos domingos, escrevo nesta página, quase sempre, abordando assuntos pessoais.
Estava preocupado que, com isso, restringisse o interesse dos que me honram com sua leitura.
Mas não foi o que ocorreu com a última crônica, na qual, no dia dos pais, fiz uma singela homenagem ao meu saudoso pai.
Sem embargo de que a família e os amigos mais chegados beiram mais de uma centena de pessoas, recebi inúmeros zaps, sobre a homenagem.
E, um deles, me fez voltar ao assunto nesta data, eis que me remeteu a lembranças de minha longínqua infância.
E essas lembranças foram provocadas por uma música, enviada pelo meu filho Dedé, que reproduzo ao final, e que veio acompanhada das observações que abaixo transcrevo:
[09:55, 09/08/2020] Dedé: Já que o Sr escreveu do vovô
[09:55, 09/08/2020] Dedé: Vai uma homenagem a ele
[09:55, 09/08/2020] Dedé: É bandolim / não violino
[09:55, 09/08/2020] Dedé: Rs
[09:56, 09/08/2020] Dedé: Mas serve
[09:56, 09/08/2020] Dedé: Bença e obrigado por tudo
O que ele não sabia e muito menos sabiam todos que me leram é que o bandolim é um instrumento que precede e ajuda no aprendizado do violino.
E antes de ser violinista, meu pai o tocava com grande perfeição, como tudo que fazia.
E o relato que ora faço, calcado na letra da música, que por sinal muito me emocionou, é da existência concreta de uma mesa e de um bandolim.
Apenas que a sala era uma oficina de selaria, a mesa era uma enorme prancha de madeira de cerca 2 x 4 metros, com espessura de 10 cm, sob a qual dois enormes caixotes com rodas, serviam para armazenar retalhos de sola e couro.
Pois bem. Ao redor dessa mesa é que ficávamos, nós crianças de casa e da vizinhança, todas na faixa dos 5 a 10 anos, além de um jovem muito especial, de seus 14 anos, Antônio Ferreira Gomes, encarapitados nos ditos caixões, com os braços sobre a mesa esperando, quando a oficina se fechava, um concerto que era só para nós.
O concertista era, nada mais, nada menos, do que o futuro Maestro Waldomiro Martelli, meu inesquecível pai, que empunhando seu bandolim (isso mesmo, bandolim) nos encantava com músicas da época.
E nós extasiados, ali ficávamos até quando ele estivesse disposto a tocar ou que as mães viessem buscar a criançada para jantar.
Pois é, dessa plateia, da qual participava também minha irmã Teresinha, várias primas e primos, quero falar especialmente daquele jovem especial a que me referi, que se tonaria o Toninho “Capota”, meu “irmão” mais velho, cidadão daqueles que todo mundo conhece e admira.
De agora em diante vou referir-me a ele como CAPOTA.
Aliás, apelido herdado pelos seus sete diletos filhos, Maria Helena, António Carlos, José Roberto, João Carlos, Maria Alice, Paulo Vitor e Rita de Cassia..
É só dizer Capota, após o nome, e todo mundo sabe quem é.
Mas antes de prosseguir uma explicação sobre o apelido.
Capota começara na oficina de meu pai como aprendiz de selaria. Mas com a modernidade e com a passagem de carroças, charretes e troles para carros, a oficina se adaptou e passou a fazer estofamentos e capotas para automóveis.
E como ele trabalhou nessa transição, tornou-se conhecido como Toninho Capota.
Então, como dissera antes, o Capota veio da roça, ainda menino (naquele tempo meninos podiam trabalhar) para aprender o ofício de seleiro, na oficina de meu pai.
Com o passar do tempo, de aprendiz, tornou-se oficial e, de oficial, sócio e de sócio, dono da oficina.
Meu pai, enquanto teve saúde e disposição, para não ficar sem fazer nada, tornou-se seu auxiliar, dedicando-se à musica, já agora por diletantismo, pois já cumprira sua missão fundando a primeira orquestra da cidade, o Pinhal Jazz e o Coro Santa Cecília, da Igreja Matriz.
No entanto, daquelas audições a que chamei de concertos, à volta da mesa da oficina, emergiram alguns músicos, dentre os quais, o personagem desta narrativa, o Capota, que se tornara um exímio pistonista.
Pois bem, voltando ao Capota. Como disse, ele se tronara oficial, sócio e dono da oficina.
Os mais antigos, que infelizmente são poucos, têm conhecimento de que corria a boca pequena, como soe acontecer em cidades do interior, que o Capota conversava enquanto o Wardô (apelido de meu pai) trabalhava.
Era uma brincadeira sadia, feita quando oportunidade havia, na frente dos dois. E ambos a aceitavam tranquilamente porque sabiam o papel de cada um dentro da sociedade. O Capota era mais o que chamaríamos hoje de “public relations” do empreendimento e o Wardô o executor.
Mesmo correndo o risco de me alongar vou trazer meu testemunho sobre essa sociedade que deu certo e que rendeu bons frutos para ambos, porque ambos eram pessoas especiais, daquelas que sempre pensavam e agiam em prol de seus semelhantes.
Minha família era de origem humilde. Quando eu tinha 7 anos, não havia chuveiro em minha casa. Tomava-se banho de bacia. A privada ficava no quintal. O fogão era de lenha e ficava no centro da cozinha. Geladeira? A gente nem sabia o que era isso. Tínhamos rádio e isso já era um grande diferencial. A televisão ainda demoraria uns 10 anos pra chegar e assim por diante.
Não que fossemos muito pobres. Era assim, com a maioria das famílias que não as dos fazendeiros, barões do café, que formavam a elite da cidade, naquela época.
E meu pai era uma criatura mais ou menos acomodada. Comíamos bem. Tínhamos boas roupas e boas camas. Éramos felizes.
Aí é que começou entrar o Capota, já sócio de meu pai.
Fazendo jus à sua função de propulsor dos negócios, ajudava no seu crescimento, fazendo a oficina render e, com o lucro, passando a comprar utensílios domésticos e melhorar de vida porque, se comprava alguma coisa para ele, induzia meu pai comprar também para nós.
E assim foi, inclusive com a casa adquirida pela oficina para abrigá-la, que terminou sendo comprada por ele e onde hoje ainda mora sua dedicada esposa, D. Cida..
Mas antes disso meu pai já comprara uma casa para nós, no centro da cidade.
Resumindo. Tínhamos uma vida pacata e simples que mudou muito com o sangue novo que o Capota imprimiu na vida do seu Wardô.
Infelizmente ambos já passaram para o andar de cima, mas eu guardo com muita gratidão esse período em que passamos de uma relativa pobreza para uma vida bem mais confortável.
Mas voltemos, enfim, ao bandolim. Esse bandolim, durante muito tempo ficava guardado numa prateleira da oficina. Depois, fui pra São Paulo trabalhar e estudar e nunca mais soube dele. Desapareceu como seu tocador.
Mas ficaram as lágrimas e a saudade doida, embaladas pela musica que aqui vai.
*Advogado e professor – Espírito Santo do Pinhal – SP