Dr. Flávio de Andrade Goulart*

As profissões da enfermagem, que correspondem a mais de 2/3 da força de trabalho em saúde no Brasil, são reconhecidas mundialmente como componente humano fundamental para se alcançar acesso e cobertura universal. A atual crise sanitária e humanitária da Covid-19 colocou em destaque a importância desta profissão, formada por enfermeiras, técnicos e auxiliares, que têm estado na linha de frente da resposta à crise, seja na gestão, na pesquisa, na vigilância epidemiológica ou, majoritariamente, na assistência aos casos da doença, para não falar na liderança das campanhas de vacinação. Não é por acaso que tal atuação na linha de frente da pandemia tem trazido consequências dramáticas para os profissionais de enfermagem, entre os quais se contam, só nos primeiros meses de 2021 no Brasil, mais de 55 mil casos confirmados e mais de 700 mortes por covid-19. Apesar de sua notória importância e de a enfermagem ser a categoria da saúde mais afetada pela pandemia no Brasil, na prática, são tímidas as iniciativas de trazer mais valorização e produzir mudanças substantivas na prática profissional da enfermagem, que historicamente tem sofrido com condições de trabalho inadequadas, baixa remuneração, vínculos contratuais frágeis, múltiplos vínculos empregatícios, sobrecarga e alta rotatividade, o que por vezes culminam no êxodo da profissão. Isso tudo se soma à noção equivocada, inclusive do ponto de vista semântico, de que são profissionais “para” (servir) médicos. Vamos começar por aí. Este “para” (de paramédicos) é o mesmo de paralelo, ou seja, o que está ao lado. Mas, convenhamos, que tal ao invés de paralelismo começarmos a pensar em convergência? E até mesmo em liderança em muitas ações de saúde?
Usarei aqui nestas reflexões, além do termo genérico enfermagem, a palavra enfermeira, já que elas são maioria absoluta na profissão. Os rapazes que se sintam incluídos. Não sou daqueles que apreciam a estranha expressão “todos e todas” (ou, pior ainda ”todxs” ou “enfermeirxs”), prefiro respeitar as regas do vernáculo…
Tomando por base o DF, creio que existam aqui e no Entorno, atualmente, cerca de uma dezena ou mais de cursos superiores de enfermagem, que colocam no mercado algumas centenas de profissionais e cada ano. Aonde iriam essas pessoas cumprir seu destino profissional? Acredito que a maioria seja da própria região, e por estas bandas devem se fixar, até porque existem cursos dessa natureza em quase toda parte no Brasil e assim as migrações não fariam muito sentido. Provavelmente a maioria dos formandos por aqui certamente procurará seu primeiro emprego em hospitais, sendo este o tipo de estabelecimento que se associa mais frequentemente o papel da enfermeira, desde os tempos de Nigthingale. Ao mesmo tempo se sabe que os hospitais brasileiros estão se reduzindo em número, embora aumentando em tamanho. De toda forma, como oportunidade de carreira, não parece muito promissor ser esta uma via exclusiva para a moçada que sai dos cursos de enfermagem. Mas, na verdade, não cabe desassossego ou pessimismo, pois há muitas outras portas abertas para as enfermeiras fora dos hospitais.
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Em tal cenário, possuem especial relevância alguns conceitos contemporâneos orientadores das práticas dos profissionais de saúde, compostos por temas ao mesmo tempo clínicos, éticos e sociais, com foco especial na relação profissional-paciente e também incluindo a otimização de custos e benefícios em saúde para as pessoas; as prioridades que devem ser assumidas na assistência; a composição e a qualificação das equipes; as questões de quantidade e qualidade da prestação de serviços, além de muitas outras. As práticas da enfermagem também devem levar isso em conta.
Assim, é preciso pensar sobre o quadro de profissionais, sejam ou não de enfermagem, em termos de sua inserção nos sistemas de saúde, para adequá-los às novas exigências epidemiológicas, humanas, técnicas e científicas, especialmente nos cenários que se abrirão pós pandemia de Covid 19. A nova realidade exigirá profissionais de saúde com formação mais complexa e ampla, com visão e prática social de promoção da saúde e maior qualificação e capacidade de responder ás múltiplas demandas geradas pela transição do padrão de doenças. Além disso, haverá necessidade cada vez maior de ampliação e qualificação profissionais, incluindo além das enfermeiras, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais e fisioterapeutas, mais uma vasta gama de praticantes de outras habilidades no campo social e da saúde, como os terapeutas de família, cuidadores domiciliares, terapeutas de várias especialidades e até mesmo pessoas das próprias famílias a serem colocadas no papel de cuidadores (mães, mulheres em geral, irmãos mais velhos) – a serem treinados para tanto. Enfim, gente que trabalhe com uma visão mais ampliada não só de assistência, mas principalmente de promoção da saúde. É fundamental que estes profissionais para o século XXI entendam e pratiquem ações de saúde que incluam aspectos culturais, sociais e, fundamentalmente, compreensão e promoção de estilos de vida saudáveis.
Fora dos hospitais, na Atenção Primária à Saúde, além de outros espaços, haverá lugar para profissionais de enfermagem inseridos em uma definida tendência mundial, a de que a profissão desempenhe um papel estratégico no avanço da mesma, o que tem sido incentivado pela Organização Mundial da Saúde e OPAS. Assim se configuram práticas consagradas nos bons sistemas mundiais de saúde, como é o caso do Canadá, do Reino Unido, de Cuba e de outros países, nos quais novos perfis, ditos de “enfermeiros em práticas avançadas” são fundamentais na construção da APS e, em particular, na promoção da saúde, na prevenção de doenças e nos cuidados às populações de áreas rurais e carentes.
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Aliás, há mais de quarenta anos, a APS tem sido reconhecida como a base de sistemas de saúde eficazes e responsivos. A Declaração de Alma-Ata de 1978 reafirmou o direito ao mais alto nível de saúde, com igualdade, solidariedade e o direito à saúde como seus valores fundamentais, enfatizando a necessidade de serviços de saúde abrangentes, não apenas curativos, mas também serviços que atendam às necessidades em termos de promoção da saúde, prevenção, reabilitação e tratamento de condições comuns. Um forte nível resolutivo de atenção primaria de saúde é a base para o desenvolvimento de sistemas de saúde. E o papel da enfermagem, que transcende o campo da assistência para se abarcar a gestão, a auditoria e a epidemiologia, vai se tornar cada vez mais importante, inclusive em situações de liderança.
Além disso, recursos humanos de tal natureza e com tal qualificação são também essenciais para atender às necessidades crescentes de saúde da população e alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, havendo ainda, entretanto, lacunas importantes entre os perfis de competência dos profissionais de saúde, enfermagem aí incluída, e as necessidades na APS, em particular na transformação da educação em saúde e na capacitação no planejamento estratégico e gestão de recursos humanos para a saúde.
Tanto na APS como nos hospitais há inovações gerenciais e assistenciais de todo tipo, por exemplo, na oferta de atenção personalizada para garantir a continuidade do cuidado em ambientes complexos, de acordo as necessidades de cada pessoa, facultando que os pacientes sejam acolhidos e protegidos nas demandas administrativas e assistenciais. Surge aí a figura que na literatura atual é denominada como concierge, um profissional qualificado e amplificado do cuidado às pessoas, no qual se reconhecem os atributos de uma “liderança de integração”. Aqui, mais uma vez, a enfermagem tem um papel fundamental, seja no seu exercício direto, na supervisão ou na capacitação de tal profissional.
Assim, na superação de certos gargalos no cuidado adequado aos pacientes portadores de condições crônicas, que constituem maioria na população, uma atuação profissional integrativa se impõe, dentro de uma rede de serviços de saúde. Assim, uma estratégia internacionalmente reconhecida neste aspecto é o desenvolvimento das tais lideranças de integração, na perspectiva de unir e pactuar conjuntamente metas de resultados para um conjunto de serviços diferentes. Isso, sem dúvida, é a “cara da enfermagem”. Se não agora pelo menos em futuro próximo.
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Tais lideranças integradoras na assistência hospitalar seriam responsáveis por organizar, coordenar e administrar atividades relacionadas diretamente aos pacientes. Mas existem também atividades que, embora não inerentes à enfermagem, porém dentro das atribuições de gestão, por exemplo em questões de hotelaria, higienização, nutrição, manutenção, dentre outros, são de grande importância para que a passagem das pessoas pelos serviços de saúde seja bem-sucedida. São serviços individualizados, por exemplo, visitas diárias aos pacientes, com coordenação e encaminhamento direto relativos às necessidades dos pacientes, tocantes aos diversos setores e áreas no hospital. Este papel não seria exclusivo da enfermagem, mas com certeza ela o desempenharia com muita competência, seja na execução direta ou na coordenação de tais atividades.
E no âmbito não necessariamente hospitalar ou da APS, mas do sistema de saúde como um todo, cabe lembrar uma série de tarefas e funções perfeitamente compatíveis e até típicas dos profissionais de enfermagem. Exemplos, aliás históricos, não faltam: docência e supervisão pedagógica; análise epidemiológica; gestão de pessoas; implantação e supervisão de sistemas de qualidade e valor; gerência de programas de saúde, entre muitos outros. Sem esquecer das tradicionais atividades na beira do leito, por certo.
É isso enfermeiras (enfermeiros também): o cavalo está passando e está arriado, não percam a montaria e nem caiam do mesmo…
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Saiba mais:
• https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/22/recursos-humanos-e-doencas-cronicas-no-brasil-2/?utm_source=newsletter#
• https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/profissionais-de-enfermagem-a-forca-de-trabalho-que-sustenta-a-saude-no-pais/?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa
• https://saudenodfblog.wordpress.com/2021/04/23/e-depois-do-covid-o-que-vira/
• https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/09/14/de-navegadores-e-porteiros/
• https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/02/21/prescricao-por-enfermeirao-sim-ou-nao/
• https://saudenodfblog.wordpress.com/2018/05/16/os-enfermeiros-e-a-atencao-primaria-a-saude/
• http://www.cofen.gov.br/oms-lanca-livro-sobre-ampliacao-do-papel-dos-enfermeiros-na-atencao-primaria_62794.html
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Ou acesse diretamente este link: ENFERMEIROS APS
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Entendendo (para refutar) o bolsonarismo em saúde (III)
Acesse: https://veredasaude.com/2021/04/19/zygmunt-bauman-explica-o-bolsonarismo-e-o-negacionismo/
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A publicação APS Forte no SUS – no combate à pandemia de Covid-19 reúne as vivências e ferramentas utilizadas pelas 19 experiências de excelência, traz o registro fotográfico dos profissionais de saúde de saúde e também um vídeo de cada autor selecionado. O registro visa contar os desafios enfrentados pelos profissionais de saúde desde a implantação da experiência, no ano passado, quando deflagrada a pandemia de Covid-19. A publicação, com cinco capítulos, descreve a metodologia desenvolvida nas duas fases da iniciativa APS Forte no SUS e traz o retrato das 1.471 experiências aprovadas, com dados sobre o panorama geográfico, distribuição por Unidades da Federação, a origem dos práticas e os temas mais concorridos. A presente publicação é multimídia, interativa, e está disponível em formato E-PUB para leitura em celulares, tablets e página web; e em formato Mobi para leitores do Kindle, além do PDF. Acesse-a em .pdf no link seguinte: https://apsredes.org/wp-content/uploads/2021/07/APSForte_interativo1607.pdf
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Obrigado pela visita (e pela leitura)!

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.