Ana Maria Coelho Carvalho*

Li sobre os dados publicados pela Comissão dos Direitos Humanos do Iraque, mostrando a enormidade das perdas humanas e catástrofes que afetaram a população do país, especialmente as crianças, como resultado da guerra e do terrorismo. 4,5 milhões de crianças pertencem à famílias que vivem abaixo da linha de pobreza. Uma tragédia humanitária.
Lembrei-me da foto do menino morto numa praia da Turquia, em setembro de 2015, e que chocou o mundo. O pequeno Aylan Kurdi, de três anos, estava com o corpinho emborcado na areia dura, o rosto um pouco de lado, encoberto pelo vai e vem da maré. Vestido com uma camisetinha vermelha, um pouco levantada deixando as costas descobertas, e uma bermuda azul. E de sapatinhos que não se desgarraram dos seus pés, incrível isso. Coisa mais linda e terna são os sapatinhos de crianças. Mas ali, naquela cena tão triste, naquela imagem devastadora e pungente do pequeno náufrago sírio na areia, os sapatinhos causavam espanto e incredulidade. Como as ondas do mar não arrancaram os sapatinhos? Com ele estava assim, tão plácido, tão arrumadinho? Deveria ser uma foto bonita, de uma criança na praia, duas das coisas mais fascinantes do mundo. Mas não era. Doía olhar a foto, doía olhar aquele corpinho inerte.
Aylan morreu no mar Egeu. Estava com sua família, o pai Abdullah, a mãe Rehan e o irmão Galip de cinco anos. Fugiam da guerra civil na Síria e queriam chegar à Grécia e depois ao Canadá, mas Aylan não devia ter noção disso. No bote havia mais 19 pessoas, todas tentando a travessia de três quilômetros, organizada por traficantes e em condições precárias, para chegar à ilha grega de Kos. Lotado e no meio de ondas muito altas, o bote inflável virou. Ele, o irmão e a mãe não sabiam nadar e da família apenas o pai escapou. Ele, o pai, que apareceu nas fotos tão perdido e desolado, voltou à Síria para enterrar sua família. Nessa tragédia, morreram mais 9 pessoas, seis delas crianças.
Todos os dias, corpos inertes de crianças refugiadas sírias, afegãs, líbias, eritreias e sudanesas jazem nas areias do Mediterrâneo. Como explicar então que, de repente, o menininho morto encontrado na praia passou a representar a dor de todas as crianças mortas? De todas as que têm suas vidas ceifadas por extremismos religiosos? Como passou a representar a dor de centenas de milhares de refugiados e se transformou numa indignação mundial ? Como, se há tantas crianças brasileiras abandonadas, dormindo nas calçadas, morrendo de fome ou de bala perdida ? E as quatro crianças que, na mesma época, morreram espremidas e sufocadas com mais 67 refugiados em uma minivan perto de Viena? Por que não nos comovemos com esses corpos como nos comovemos com o de Aylan?
As razões podem ser várias, conforme foi registrado na mídia. Talvez porque o menininho representa toda uma infância perdida. Talvez porque os bracinhos e as perninhas tinham uma fofura que doía. Ou então, porque ele estava tão arrumadinho, tão bonitinho para começar uma nova vida. Ou simplesmente porque estava justo na linha entre o mar e a areia, onde tantas crianças fazem seus castelos de brinquedo. Ou porque o seu corpinho foi devolvido pelo mar na mesma posição em que muitas crianças dormem. Ou mesmo porque qualquer um de nós poderia identificar no menininho os nossos filhos, os nossos netos, com aquela roupa de passeio tão comum e bonitinha (e com sapatinhos nos pés). Ou então porque seu corpinho largado na areia representou um contraste chocante com as cenas de desespero que vemos na crise dos refugiados.
Enfim, a crueza da foto do menininho e o que tem por trás dela, o que ela realmente representa, mostrou a tragédia humanitária que vem- há anos- se desenrolando aos nossos olhos. E com cada uma dessas crianças mortas, morre também um pouquinho de cada um de nós. Humanidade, nós falhamos.

*Bióloga – Uberlândia – MG- anacoelhocarvalho@terra.com.br