Antônio Pereira*

A tardinha já se recolhia para que a noite assumisse o comando da vida terrestre. Alguns torcedores deixavam o Parque do Sabiá, pouco antes do fim do jogo, aborrecidos com o resultado desenhado de zero a zero que só complicaria a segunda partida do Verdão, fora de casa, contra o Remo, de Belém, em busca de um título inédito.
Emmanuel dos Santos, 68 anos, pelo contrário, estremecia de prazer. O empate era quase a garantia do campeonato ir para o seu time.
Vivinho, entretanto, surpreendeu a todos, no último minuto, quando atirou de queima-roupa sobre o goleiro Bracali e mudou todas as expectativas: tanto a dos torcedores que saíam acabrunhados do estádio e adivinharam o que acontecera ao ouvir a súbita zoeira que veio lá de dentro, quanto a do Emmanuel, velho motorista da Funai, que sentiu uma dor profunda no peito como se todas as suas esperanças se esfumaçassem naquele urro de alegria.
Mas sempre há uma réstia a que se agarrar.
O Uberlândia Esporte Clube chegou ressabiado ao Estádio do Mangueirão, no Belém do Pará, disposto a amarrar o jogo no empate inicial. Ao Remo restava apenas ter que furar o bloqueio e vencer o Moacir. Uma difícil execução, mas a única que mudaria o título de mãos. Tão tensos os diretores do UEC estavam que esqueceram no hotel os documentos do Eduardo, titular do meio-campo, entrando em seu lugar, o reserva Maurinho, enquanto Pietro Carlo Paladini, voltava correndo ao hotel.
Apaixonado, Emmanuel foi com os dois filhos ao campo. Espumava de raiva ao ver que a defesa do Uberlândia não permitia vazamentos.
Ao contrário do que aconteceu no Parque do Sabiá, o Remo não teve um último minuto consagrador. O juiz carioca Wilson Carlos Santos encerrou a partida, com o Mangueirão silencioso como o vulcão traiçoeiro que explode pela madrugada sem qualquer aviso.
Usando das prerrogativas da imunidade parlamentar mais o seu atrevimento natural, o deputado federal Manuel Ribeiro, presidente do Remo, declarou em entrevistas jogadas no ar pelas emissoras de rádio que já esperava aquele desfecho fraudulento: o campeão tinha que ser um clube do Sul!
O representante da CBF entregava o troféu ao capitão Zecão, quando a torcida furibunda, quem sabe estimulada pelas palavras insensatas do deputado, arredou a segurança policial e adentrou no gramado (como dizem os bons narradores). Entre eles, a inconformada família do Emmanuel.
Afastado dos filhos que faziam outras estrepolias, Emmanuel avançou sobre o jogador Luizinho, um negro enorme, e começou a chutar-lhe as canelas, a socar aonde suas mãos alcançavam. Outros torcedores partiam para cima de outros uberlandenses, uma loucura!
Além de não absorver pacificamente a agressão revidando com a força que lhe Deus lhe deu, Luizinho recebeu o apoio do Batata, outro jogador enorme, que estava próximo e quis defender o companheiro. Ninguém podia prever quem mais entraria naquela confusão. O campo era o espaço da vingança dos derrotados. Para os uberlandenses era apanhar ou bater, sem outra saída, com muitas possibilidades de serem massacrados, isso, sim.
Aos primeiros revides, Emmanuel despencou da valentia e escorreu para o chão; os jogadores ainda bateram e chutaram o velho torcedor. Enfim, a polícia aquietou os ânimos. No chão, o Emmanuel inerte. Tinha morrido. De um de seus ouvidos escorria um filete de sangue. O Delegado de Polícia, Frederico Mello, presente no estádio, autuou Luizinho e Batata em flagrante. Os demais jogadores uberlandenses ficaram detidos para depoimentos.
Havia mais ou menos 24 mil torcedores no campo. Eles deixaram o estádio, mas permaneceram do lado de fora, cercando as saídas. Embora detidos e autuados, os jogadores não podiam sair dos vestiários. Só as 23 horas, os belenenses inconformados abandonaram a vigília e se foram.
Luizinho e Batata foram obrigados a se submeter a um exame anti dopping no Instituto Médico Legal exatamente onde estava sendo autopsiado o corpo de inditoso Emmanuel. Talvez tenham sido os primeiros a saber que a troca de violências não foi a causa mortis do torcedor do Remo. A emoção forte tinha-lhe estourado um aneurisma cerebral – essa a razão final do seu falecimento.
A intemperança emotiva dos belenenses, entretanto, exigiu a indiciação de todos, todos os jogadores do Uberlândia Esporte Clube num processo por agressões físicas que parece não ter chegado a nada, nem poderia chegar.
Como diria o falecido Jânio Quadros quando um fazendeiro foi lhe cobrar o preço de um boi que um trem da Fepasa havia atropelado e morto: “Com certeza a locomotiva saiu dos trilhos e foi lá no seu pasto matar o seu boi!” E não pagou.
Todo aquele aborrecimento não arrefeceu os ânimos da torcida uberlandense que, desde a ponte Quinca Mariano, sobre o Paranaíba, na divisa de Minas e Goiás, aguardava os heróis esportivos de 1984: os Campeões da Taça CBF!!! E o Técnico? O Cento e Nove!

Fontes: Jornais da época

*Jornalista e escritor – Uberlândia – MG